Ao entrar na sede do Alcoólicos Anônimos em Bauru, a presença de um cartaz na entrada chama a atenção. Um homem e uma mulher vestidos de noiva e noivo, com os braços dados, em alusão ao casamento; embaixo, os dizeres “até que a bebida os separe”. O elo entre o abuso de álcool e a violência doméstica é um problema notável no Brasil e permeia diversas esferas da sociedade, que vão da legalização e incentivo ao consumo da substância à construção social de homens e mulheres.
O estudo “Padrões de violência domiciliar associada ao uso de álcool no Brasil”, de Arilton Martins Fonseca, foi divulgado pela UNIFESP e destrincha questões interessantes sobre essa relação. O vídeo abaixo retrata alguns dos dados obtidos por Fonseca em seu trabalho:
Das prateleiras comerciais aos armários da cozinha
A facilidade para comprar bebidas alcoólicas é um dos fatores que agravam essa estatística. O álcool é legalizado no Brasil para maiores de idade e, em boa parte dos estabelecimentos comerciais do setor alimentício, o leque de bebidas é imenso. Bares, restaurantes, supermercados e postos de conveniência apresentam dezenas de opções entre tipos de bebida, marcas, tamanhos e sabores. Os preços, que vão de unidades a centenas de reais, abrangem todas as classes sociais. Sendo tão vasta a oferta, os etílicos compõem a droga lícita mais utilizada no Brasil, com estimativa de 74,6% de uso na vida e 12,3% de dependência, segundo o Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid). É, portanto, fácil recorrer ao álcool em qualquer situação, incluindo em momentos de descontrole emocional, tristeza, raiva ou angústia – sentimentos frequentes em casos de violência doméstica.
Junto ao contexto propício à compra de bebidas alcoólicas, há um estímulo frequente à sua ingestão. É comum a ideia de beber “para relaxar” porque, em pequenas quantidades, o álcool provoca desinibição. Informações do Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (CISA), afirmam que contendo entre 0,03 e 0,12 gramas de álcool a cada 100 mililitros de sangue, o indivíduo apresenta “euforia leve, sociabilidade, aumento da autoconfiança e torna-se mais falante”. Essas características, aparentemente inofensivas, tornam o álcool um produto sedutor, por seu efeito social, de entrosamento; e físico, de excitação. No entanto, a ingestão frequente e exagerada de bebidas alcoólicas pode transformá-las em uma fuga da realidade – o que aconteceu com o mecânico Júlio*. Filho de pai alcoólatra, o qual faleceu aos 33 em decorrência do vício, Júlio também teve graves problemas com a substância durante anos: “Eu ficava dias sem tomar banho, cheguei a morar na rua por causa do alcoolismo. Subi no telhado da minha casa e tentei atear fogo nela, até que a polícia apontou um revólver pra mim, disse que eu estava pondo os vizinhos em perigo e eu desci”.
O álcool e o machismo
A violência doméstica que praticou com sua esposa foi outra grande dificuldade que Júlio enfrentou por causa de seu problema com o álcool. Sem beber, o mecânico não agredia a parceira; mas ao ingerir álcool, afirma que “virava um monstro”. “Eu batia na minha mulher, no dia seguinte via ela cheia de roxo e não lembrava de nada”, afirma o mecânico.
Segundo uma pesquisa feita em 2014 pelo Instituto Avon em parceria com o Data Popular, três em cada cinco mulheres jovens já sofreram esse tipo de violência. Há uma série de questões envolvidas na cultura de violência contra a mulher, sendo as principais o machismo (estrutura social que favorece o sexo masculino em detrimento do feminino) e a misoginia (ódio às mulheres e aos atributos femininos). É possível estabelecer uma relação entre estes dois fatores ao abuso de bebidas alcoólicas, resultando no aumento ou prolongamento dos casos de violência doméstica. O Comitê de Combate ao Machismo de Bauru afirma que “um homem machista, estando alcoolizado, possui mais chances de agredir verbalmente, psicologicamente ou fisicamente uma mulher, considerando os efeitos do consumo excessivo de álcool”. A gerente técnica de Gênero da Plan International Brasil, Viviana Santiago, também sugere essa ideia: ” Acredito que pessoas machistas ao consumirem álcool podem ter potencializadas suas reações, pelos efeitos típicos de sua ingestão, ainda que o álcool não produza machismo – ele já existe no sujeito”.
Pesquisas reforçam essa ideia. De acordo com os dados do CISA, um indivíduo que apresenta de 0.18 a 0.30 gramas de álcool a cada 100 ml de sangue apresenta o estágio de “confusão”. Nesse estágio, alguns dos sintomas são “desorientação, confusão mental e estados emocionais exagerados”. Considerando uma construção social machista, em que um “homem de verdade” deve ser forte e insensível, a agressividade e o desapego às emoções que dele são esperados se intensificam nesse estágio de “confusão”. Desta forma, as alterações provenientes do álcool no cérebro de um homem podem levá-lo a ações de violência que estão inconscientemente ligadas ao que se espera dele como homem.
A subsecretária de política para as mulheres do Rio de Janeiro, Adriana Mota, explica: “O álcool é um agente potencializador de violências, uma vez que age sobre o sistema nervoso, podendo alterar a capacidade de tomada de decisões orientada e a percepção da realidade. A utilização de álcool por pessoas que já tenham um comportamento prévio agressivo ou violento pode potencializar essas características, fazendo com que episódios de explosão violenta se tornem recorrentes, quando do consumo de bebidas alcoólicas.”
Essas ações violentas podem ser de diferentes tipos, conforme mostra o estudo de Arilton Fonseca.
As agressões praticadas dentro do ambiente domiciliar, especialmente associadas ao uso excessivo do álcool, estão intimamente ligadas ao surgimento e perpetuação de famílias desestruturadas. O Comitê de Combate ao Machismo afirma que “O consumo demasiado de bebidas alcoólicas pode ser um dos fatores de desestruturação de uma família, pois o estado alcoolizado pode provocar situações de violência (física ou psicológica) em relação à mulher”. Segundo um membro do Alcoólicos Anônimos de Bauru, a maioria dos homens que vão à comunidade em busca de ajuda cometiam violência doméstica e perderam seus relacionamentos estáveis devido às agressões durante os momentos de embriaguez. Alguns recuperam as relações após a evolução e outros conseguem novos relacionamentos, porém há aqueles que, pela dificuldade de estabelecer novos contatos e restabelecer os já existentes, ficam sozinhos.
O acontecimento e a repetição de atitudes violentas afasta as duas partes do casal e, por consequência, os filhos – especialmente do agressor. Assim aconteceu na casa da jovem Alessandra Duarte: sua mãe foi vítima de violência doméstica durante anos. “Meu pai sempre foi de beber. Teve ocasiões em que ele estava completamente alterado e teve discussões enormes com a minha mãe, quebrava a casa inteira. Uma vez, ele a espancou ao ponto dela ter de fazer exame de ressonância magnética para ver se não afetou nada”, afirma a jovem. O crescimento de uma criança em um contexto como esse pode comprometer seu desenvolvimento psicológico, físico e social e torná-la uma criança insegura, frágil e avessa à figura do agressor.
Também há consequências psicológicas para quem comete a violência. Júlio, que afirmou ter problemas com os filhos em decorrência do alcoolismo, conta a história de uma deles: “Eu tenho uma filha com quem retomei contato há dois anos. Passei 18 anos pagando pensão sem conhecê-la porque ela tinha raiva de mim, eu batia na mãe dela.”.
A caminhada lenta
Para quebrar esta relação entre o álcool e a violência doméstica, a necessidade de políticas públicas para os dois universos e um tipo específico de política que inclua ambos é gritante. A Lei Maria da Penha, de 2006, e a Lei do Feminicídio, de 2014, por exemplo, já ajudam a mudar as estatísticas relacionadas à violência contra a mulher. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), desde que foi criada, a Lei Maria da Penha ajudou a diminuir em aproximadamente 10% a taxa de homicídios de mulheres em casa. Em relação ao álcool, a Política Nacional sobre o Álcool, os Centros de Atenção Psicossociais para usuários de Álcool e outras Drogas (CAPS AD) e os Alcoólicos Anônimos seguem o mesmo caminho. Antônio*, alcoólatra em recuperação, afirma: “o AA é uma troca de experiências, mostrou para mim que eu tinha condições de levar uma vida serena e sóbria, de conquistar a minha família de novo”.
É importante também lembrar que, nesses casos, não adianta focar em apenas uma das causas, pois o problema é mais amplo. Segundo Adriana Mota, “não se pode criar um nexo de causalidade entre uso de álcool e violência doméstica, sob o risco de focar numa causa que, se suprimida, não acarretará no fim da violência”. Existe a necessidade, portanto, de associar políticas públicas destinadas aos dois problemas simultaneamente. Como sugestão do Comitê de Combate ao Machismo, aparecem, por exemplo, “campanhas educativas nas escolas fundamentais e médias, assim como em universidades públicas e privadas; e palestras acompanhadas de materiais audiovisuais ou impressos, que correlacionem o combate à ideologia machista e evidenciem as consequências do consumo excessivo de bebidas alcoólicas, considerando os casos denunciados de violência doméstica”.
Enquanto isso, pessoas que sofrem com o abuso de álcool e com a violência doméstica, em quaisquer âmbitos, seguem em uma lenta caminhada em busca de uma vida mais segura e digna. Alessandra, filha de uma vítima de violência doméstica, apoia que a mulher busque a separação do agressor: “Minha mãe passava por isso porque achava que deveria suportar por ser o pai da filha dela. Mas hoje vejo que se ela tivesse largado e/ou arranjado outra pessoa, a vida dela teria sido muito melhor também”. Já Júlio, após os problemas de violência doméstica com sua esposa, luta contra o álcool e reconstruiu sua família: “Hoje eu evito o primeiro gole e meu casamento é outro. Minha esposa fala que eu sou o melhor marido do mundo”.
Para a necessidade de ajuda com o consumo excessivo de álcool, procure a unidade do Alcoólicos Anônimos mais próxima.
Em caso de violência doméstica, ligue 180, número da Central de Atendimento à Mulher.
*Júlio e Antônio são nomes fictícios usados para preservar a identidade das fontes.
Reportagem Especial e Produção Multimídia: Helena Botelho
Editor-Adjunto: Vitor Azevedo
Editora-Chefe: Patrícia Konda