O alcoolismo, conhecido também como síndrome de dependência de álcool, consiste em um conjunto de fenômenos comportamentais e fisiológicos que se desenvolvem após o uso repetido do álcool. O consumo compulsivo do produto é classificado como doença crônica e incurável pela 10ª edição da Classificação Internacional de Doenças (CID-10), da Organização Mundial de Saúde (OMS).
O especialista em Antropologia da Saúde e autor do livro “Nosso remédio é a palavra”, Edemilson Antunes de Campos, explica que a definição do alcoolismo, enquanto doença crônica e fatal, só se deu nos anos 1930 e 1940, por meio do desenvolvimento conjunto de teorias dos Alcoólicos Anônimos (AA) e de pesquisas conduzidas pelo Yale Center of Alcohol e dirigidas pelo pesquisador estadunidense E.M. Jellinek.
O diagnóstico da síndrome de dependência do álcool é, geralmente, realizado pela observação de uma série de comportamentos e sintomas: o forte desejo de beber, a dificuldade em controlar o consumo, o uso continuado do álcool, o não cumprimento de atividade regulares para o uso da bebida, a necessidade de aumentar as doses para obter efeitos desejados e, por vezes, os sintomas de abstinência física (indicativos de sudorese, tremores e mudança de humor).
Segundo o Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (CISA), essa avaliação pode contar com uma gama extensa de profissionais da saúde, tal como assistentes sociais, médicos clínicos, educadores físicos, psiquiatras e psicólogos. O acompanhamento varia conforme a necessidade de cada paciente mas, geralmente, dura um período considerável de médio a longo prazo para que o sucesso dos procedimentos seja assegurado.
Campos define o alcoolismo como uma doença de caráter físico-moral, na qual o doente torna-se incapaz de cuidar de si mesmo e dos familiares. “Uma forma de identificar a doença diz respeito à perda dos laços familiares e de trabalho, que garantem ao indivíduo uma identidade social, por exemplo, a de pai e a de trabalhador”, completa.
[…] o alcoolismo é uma doença multicausal, cujas causas estão ligadas aos fatores genéticos e ambientais (sociais e culturais)”, EDEMILSON ANTUNES CAMPOS
A funcionária pública Tatiana*, 46 , conta que o alcoolismo afetou a sua vida de diversas maneiras. “Quase perdi a vida em um acidente de carro. O respeito dos meus filhos comigo, assim como boa parte de meus relacionamentos, foram muitas vezes abalado pelo álcool”. Ela revela também que só se deu conta de que possuía a doença quando percebeu que, após o primeiro gole, não conseguia mais parar de consumir a substância. “Quando cheguei a passar quase 24 horas bebendo e tendo consequências sérias com isso, foi que percebi o problema”.
Desenvolvimento da doença
As causas da dependência de álcool abarcam fatores de dimensões orgânicas, psíquicas e sociais, podendo envolver condições culturais e familiares e, até mesmo, questões genéticas. “Em pesquisa feitas em grupo nos Alcoólicos Anônimos, encontrei duas perspectivas nas entrevistas com os membros (de pacientes com doenças de origem endógena e ambiental). Assim, pode-se dizer que o alcoolismo é uma doença multicausal, cujas causas estão ligadas aos fatores genéticos e ambientais (sociais e culturais)”, afirma Campos.
Em diversos casos, o alcoolismo é resultado de um comportamento fundamentalmente familiar, no qual o que desperta o uso indiscriminado da bebida tem origem em um costume iniciado dentro de casa. Para a doutora em Psicologia Clínica e Cultura pela UnB, Adriana Sócrates, esse tipo de comportamento pode ser incitado na infância: “crianças que vivem em contexto de uso de álcool, consomem por estímulo de adultos”, aponta.
O motorista aposentado, Edwald dos Santos, acredita que os fatores familiares foram a principal causa do desenvolvimento da doença que o acometeu aos 16 e o acompanhou por quase 34 anos. “Meu pai e minha mãe eram alcoólatras. Eles brigavam muito, então às vezes eu não dormia porque ficava preocupado de um matar o outro. Começar a beber foi o meio que encontrei para fugir dos problemas de casa”.
Sob o ponto de vista dos aspectos orgânicos e endógenos causadores da doença, a configuração genética, que explica os comportamentos relacionados à dependência alcoólica, ainda é pouco conhecida. De acordo com um estudo publicado em 2011, na revista científica Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS), a regulação do consumo de álcool no organismo e a manifestação do autismo podem ser originados a partir de um mesmo gene: o auts2, que atua em células nervosas que controlam a sensibilidade ao álcool, a precipitação, a ansiedade e os mecanismos de recompensa. Esse gene está ligado a substâncias relativas a outros transtornos psíquicos e cognitivos, associados diretamente à ingestão de bebidas alcoólicas.
Informações divulgadas pelo CISA revelam que as chances de indivíduos com transtornos de uso de álcool possuírem filhos com a doença é de 3 a 4 vezes maior. Esses dados também levam em consideração crianças separadas de seus pais biológicos, o que reduz as probabilidades de causas ambientais de obtenção da doença.
Ele mostra, ainda, que a genética afeta em cerca de 60% no desenvolvimento de síndromes de dependência do álcool. A pesquisa foi aplicada em gêmeos não idênticos (aqueles que apresentam apenas metade da carga genética equivalente) e que foram expostos às mesmas condições familiares e culturais durante a vida.
Grupos de terapia e desintoxicação
O tratamento do alcoolismo pode ser feito de diversas maneiras, por meio de terapias e procedimentos concomitantes. No entanto, o mais importante antes de iniciar o tratamento é admitir o problema. “Enquanto não houver o reconhecimento da dependência e dos prejuízos associados, não haverá disponibilidade para o tratamento”, afirma Adriana Sócrates.
Confira mais sobre esse reconhecimento no depoimento de Vanderlei*, do grupo Caminhos Da Vida Alcoólicos Anônimos.
A recuperação e o processo de intervenção da doença costumam abranger dois passos: a desintoxicação e a reabilitação. Por desintoxicação entende-se todo o processo que, geralmente, é conduzido e supervisionado por equipe médica, e possibilita a administração e controle dos efeitos causados pela abstinência do álcool, tais como sudorese, depressão, ansiedade e confusão mental. Já a reabilitação configura-se como os tratamentos a longo prazo, feitos especialmente por grupos de apoio, que buscam auxiliar os alcoolistas em recuperação a viverem sem o álcool.
O tratamento de dependentes deve sempre contar com uma equipe multidisciplinar que atenda as mais diversas necessidades em todos os seus aspectos, como o social, psicológico, profissional e até jurídicos em alguns casos. A ajuda de profissionais atuará no sentido de modificar padrões de comportamento que levam o paciente ao uso da substância.
Outro fator importante nas etapas de tratamento e recuperação é o apoio da família e amigos, já que muitas vezes o círculo de convivência precisará ser refeito para que o dependente tenha o menor contato possível com o álcool. Tal apoio é importante em algumas situações nas quais a autoconfiança do dependente pode ser abalada, como em casos em que a internação é necessária.
As terapias que buscam a reabilitação dos alcoolistas são, geralmente, feitas em grupo, com depoimentos motivacionais, compartilhamento de experiências e até auxílio emocional e espiritual. O maior grupo de auxílio e reabilitação do mundo é o dos Alcoólicos Anônimos, comunidade de voluntários, fundada em 1935 nos Estados Unidos, que busca o auxílio mútuo para a manutenção da sobriedade e abstinência total e permanente de seus membros.
“Falando uns aos outros nas reuniões de recuperação, os membros dos AA possibilitam àquele que ‘perdeu o controle sobre o álcool’ a formulação de um sentido para a sua experiência, a partir da identificação com o exemplo dos demais. Isso faz com que o alcoolista em recuperação reconquiste a responsabilidade de cuidar de si mesmo”, explica Edemilson Campos.
A jornalista Rebeca Vicente *, de 38 anos, é membro dos AA e dos Narcóticos Anônimos (NA) há dois anos e meio, e conta que os grupos funcionam como ajuda mútua, de modo que os integrantes explanam sobre sua vida e recuperação. “É sugerido viver um dia de cada vez. Como suporte, temos os 12 passos e alguns falam de um Poder Superior da compreensão de cada membro. Geralmente contamos com um padrinho ou madrinha com mais tempo sóbrio (ou limpo, como falam em NA) para nos ajudar”. Ela diz ainda que “são programas simples, mas que funcionam para quem realmente quer. As pessoas com múltiplos anos limpos, que continuam voltando, são provas disso.”
Para os Alcoólicos Anônimos, a dependência da substância psicoativa é uma doença incurável, sendo imprescindível a assiduidade nas reuniões e o compromisso com os preceitos estabelecidos pela organização.
No vídeo abaixo, Vanderlei explica um pouco mais sobre as reuniões do Grupo Caminhos da Vida e dos Alcoólicos Anônimos.
*As fontes pertencentes ao grupo dos Alcoólicos Anônimos preferiram manter sua identidade em segredo devido a regras da organização – Nomes fictícios.
Caso você necessite de ajuda com o alcoolismo, procure a unidade mais próxima do Alcoólicos Anônimos (AA).
Reportagem: Matteus Corti
Produção Multimídia: Victor Pinheiro
Editora: Thais Modesto
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