Até que ponto os discursos de ódio devem ser aceitos em sociedade?
No dia 6 de novembro, Raphaella foi para a escola em Alexânia, Goiás, e de lá não mais voltou. Às 7h50 da manhã, a menina de 16 anos de idade foi recebida na sala de aula por uma alvejada de tiros. Onze, no total, todos no rosto. O motivo? Não ter aceitado namorar com Misael Pereira.
A violência desse acontecimento ainda choca o país. Segundo dados divulgados pelo Fórum de Segurança Pública, uma mulher é assassinada por um homem a cada duas horas no Brasil. Maria Aparecida, Raphaella e Kelly, são apenas alguns dos nomes que hoje compõem os dados estatísticos deste crime que tem nome: feminicídio.
Suas motivações mais comuns são o ódio, o desprezo ou o sentimento de perda do controle e da propriedade sobre as mulheres, muito comuns em sociedades marcadas pelo machismo, como no caso brasileiro.
É aí que entra a discussão sobre a tolerância. Discursos de ódio, de inferioridade de gênero, pensamentos radicais e racistas devem ser tolerados, ou todo e qualquer indivíduo deve ser livre para dizer o que pensa, por pior que seja o conteúdo desse pensamento? Piadas machistas no trabalho, comentários odiosos nas redes sociais devem ser tolerados em prol da liberdade de expressão?
O que é o Paradoxo da Tolerância de Popper?
A discussão sobre a tolerância e o combate aos discursos de ódio não é recente. Já em 1945, com o desenrolar da 2ª Guerra Mundial e o fortalecimento do discurso antissemita, o filósofo austríaco Karl Popper desenvolveu a tese conhecida como “Paradoxo da tolerância”.
Nela, Popper defende que uma sociedade tolerante ao extremo está fadada ao fracasso. Os indivíduos que toleram todo e qualquer discurso de ódio serão destruídos, em algum momento, pelos intolerantes.
O paradoxo encontra-se justamente nessa ideia. Para que uma sociedade seja tolerante ela deve ser intolerante com os intolerantes. Ou seja, para reduzir, por exemplo, os índices do feminicídio, a sociedade deveria não tolerar os comportamentos e discursos machistas.
Feminicídio no Brasil: O Discurso que mata
Casos como o de Raphaella não são raros no Brasil e sobem mais a cada ano. De acordo com dados recolhidos pelos Ministérios Públicos Estaduais, de março de 2016 a março de 2017 o Brasil registrou ao menos 8 casos de feminicídio por dia. No total foram 2.925 mulheres que perderam a vida somente nesse período.
Essas mortes decorrem, em grande parte, da difusão arraigada do discurso machista na sociedade brasileira. Pensamentos de superioridade do homem, objetificação da figura feminina, descredibilidade da voz da mulher favorecem diretamente essas estatísticas. Por isso a importância de se repensar a tolerância aos discursos de violência e aos limites da ética e das liberdades individuais.
Um caso não muito recente, mas que representa essa necessidade de revisão aconteceu em Campinas, no primeiro dia de 2017. Durante a queima de fogos, Sidnei Ramis pulou o muro da casa da ex-mulher e matou a tiros 12 pessoas, incluindo o filho de 8 anos.
O motivo da chacina teria sido a briga do casal pela guarda do filho, mas a carta deixada por ele mostra que na verdade os mortos ali foram vítimas do feminicídio:
“A vadia foi ardilosa e inspirou outras vadias a fazer o mesmo com os filhos, agora os pais quem irão se inspirar e acabar com as famílias das vadias.”
“Filho, não sou machista e não tenho raiva das mulheres (essas de boa índole, eu amo de coração, tanto é que me apaixonei por uma mulher maravilhosa, a Kátia) tenho raiva das vadias que se proliferam e muito a cada dia se beneficiando da lei vadia da penha!”
“(…) eu ia matar as vadias (eu já tinha a arma e raspei a numeração pra não prejudicar quem me vendeu, ela precisava de dinheiro). Família de policial morto não recebe tantos benefícios com a família de presos. Cadê os ordinários dos direitos humanos? Estão sendo presos por ajudar bandidos né?”
Em resposta ao discurso de ódio da carta, vários usuários de redes sociais tentaram justificar a ação do marido corroborando com seus argumentos:
O Paradoxo da Tolerância e as liberdades individuais
Discursos como esses, de acordo com Popper, devem ser combatidos e não aceitos dentro de uma sociedade democrática tolerante. Porém, aí entra a questão das liberdades individuais. O professor de filosofia da UNESP, Alan Ibn Chahrur explica essa ideia.
Ele afirma que o pensamento do filósofo austríaco se funda na concepção de que não há liberdade individual fora de uma “sociedade aberta”. Portanto, todos os discursos que não se encaixam nas normas aceitas em sociedade representam um risco às liberdades individuais, e devem ser contidos:
“Pode-se dizer então que o paradoxo da tolerância respeita sim as liberdades individuais. Portanto, todas aquelas pretensões que não se inserem na arena de um discurso racional, construído segundo a livre apreciação dos indivíduos, podem ser consideradas uma ameaça às liberdade individuais, pois antes de tudo configuram uma ameaça à sociedade aberta na qual as referidas liberdades se consolidam. Tampouco creio que se trata de combater o discurso ou o direito ao discurso, mas justamente o contrário”. – Alan Ibn Chahrur – mestre em filosofia
Seguindo essa linha de pensamento, Popper defende inclusive o uso da violência no combate à intolerância. Sua justificativa parte da ideia de que os discursos de ódio são construídos de maneira tal que não se baseiam na argumentação racional. Os seguidores dessas ideias não saberiam lidar com opositores de outro modo que não seja a violência. Dessa forma, para proteger a maioria, seria justificável que o Estado se utilizasse da violência.
Autoritarismo e a liberdade
A defesa desse argumento fica presa numa linha muito tênue entre o autoritarismo violento e a liberdade. O professor e doutor em Filosofia Eli Vagner comenta que reconhecer a necessidade de normatização, ou seja, reconhecer a possibilidade de interferência do Estado, seja ela violenta ou não, significa reconhecer o princípio da autoridade.
Esse princípio sempre esteve relacionado às instituições. No período atual, em que a legitimidade delas está sendo constantemente questionada, torna-se difícil aceitar a ideia de que as autoridades têm capacidade para decidir sobre o que se fala. O professor lembra ainda da relatividade do conceito da própria violência:
“O Estado usa a violência sobre o indivíduo que tentar te assassinar, por exemplo. Violência pode ser definida em vários níveis. Se alguém tentar te matar o Estado interfere com a violência do Estado. A violência, nesse sentido, é um bem social, afinal nós não queremos que nos matem e, se não fosse a violência do Estado, alguém poderia nos matar impunemente. Obviamente este é um caso extremo, mas é um bom exemplo de como a violência é um conceito relativo. Infelizmente a violência é útil. Não sou eu que afirmo, são os juristas que elaboraram as constituições dos Estados democráticos de direito.”- Eli Vagner – doutor em filosofia
Combater o discurso muda o discurso?
O pensamento da tolerância tecido por Karl Popper esbarra diretamente na questão da liberdade, seja ela de ação ou discurso. Na sociedade contemporânea, que hoje valoriza a subjetividade e as liberdades individuais, falar em proibir discursos gera, no mínimo, um desconforto.
Mas afinal, proibir a fala, pode mudar o pensamento intolerante? De acordo com Alan, “Certamente não. Mas pode significar impedir, ou ao menos diminuir, a possibilidade de que esse discurso se consolide no plano prático da ação.”
Ou seja, é certo que combater o direito de fala não vai fazer com que pessoas com discursos preconceituosos e quaisquer outros discursos de ódio mudem o que pensam. No entanto, pode evitar que ações concretas cheguem a acontecer, como por exemplo o assassinato de Raphaela, Kelly e tantas outras pessoas que sofrem algum tipo de intolerância, seja por sua cor, gênero, classe social, religião ou qualquer outro aspecto.
O que deve haver é sempre um meio termo. A tolerância deve ser sustentada em sua maior extensão possível, sem, no entanto, ser aceita de forma absoluta.
Reportagem: Larissa Cavenaghi
Produção Multimídia: Lívia Reginato
Edição: Sofia Hermoso