Catireiros batem o pé pela preservação das tradições rurais

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Há muito tempo lá em Tibiriçá, tinha um sitiante que toda véspera de São João organizava uma festa. Matava um garrote e convidava todos os amigos da região. O pessoal se organizava na sala para rezar o terço e, terminado o terço, saía o altar e entravam o violeiro e os dançarinos para fazer o catira. Nessa época as casas eram de assoalho, piso apropriado para as botinas fazerem sua música. E ficavam os catireiros sapateando e batendo palmas, acompanhando as batidas da viola. Esses, é claro, eram os mais antigos.

Os jovens ficavam bailando no quintal. Antônio, que era ainda um molequinho, esperava os velhos descuidarem para escapulir para os fundos dançar com a turma. Dali a pouco vinha um responsável chamar: “Toninho, vem cá!” Tinha um senhor que sempre exagerava na bebida e precisava sentar um pouco. O mocinho, que fora ensinado pelos pais, precisava entrar no meio dos idosos puxar o catira até umas certas horas. Depois o homem sarava, voltava à dança e Toninho escapava de novo para o baile. A mesa ficava posta e tinha comida a noite inteira. Quentão, mandioca e churrasco. O pessoal dançava um pouco, comia, dançava de novo a assim a festa prosseguia até o amanhecer. Quando amanhecia o povo ia lá na mina lavar o rosto, era coisa de lenda. Depois todo mundo retornava à festa, se secava e voltava para casa, que o sol já estava alto.

Quem diria que esse jovem que teimava em fugir do catira viria a se tornar um de seus maiores defensores?

Toninho Domingues, agora um senhor (“tenho só 82 anos”, ele brinca), desde pequeno praticou a dança que é uma tradição na família. Seu pai e seu tio eram catireiros, e dos dez irmãos, cinco meninos e cinco meninas, todos saíram catireiros e violeiros. Eles viram uma oportunidade quando a extinta Bauru Rádio Clube, primeira emissora de rádio da cidade, organizou um concurso de catira. Mas para a inscrição seria necessário que o grupo inventasse um nome. Chamou-se então “Grupo Caçula de Catira”, nome mantido até hoje, embora de caçula o grupo já não tenha tanto. “Nome de grupo é que nem batismo. Você batizou de Zé, é Zé até morrer. João, é João até morrer.” O Grupo Caçula de Catira ganhou o concurso em primeiro lugar.

Mas o catira não trazia sustento, e embora a música tenha permanecido viva nas crianças conforme elas cresceram, cada um tinha o seu trabalho. Toninho Domingues deixou o trabalho na fazenda para se tornar ferroviário, profissão que manteve até se aposentar. Foi professor de catira por dez anos no Teatro Municipal de Bauru, onde tinha uma turma de crianças, mas quando esse grupo se desfez cada uma foi para um lado. As que permaneceram agora já são todas crescidas. Toninho até brinca quando vai fazer show: “O nosso grupo chama Grupo Caçula, mas hoje em dia só tem vovô, caçula não tem mais ninguém.”

O grupo atual foi formado quando Toninho era diretor do sindicato e decidiu para o dia 30 de abril, que é dia do ferroviário, organizar uma missa sertaneja. Toninho contatou um amigo que tinha um programa sertanejo na rádio e pediu para ele usar sua voz para convidar os violeiros para ensaiar. Eles conseguiram 32 membros no grupo, dos quais 17 tocavam alguma coisa. Os únicos instrumentos eram violão e viola. “Depois o padre da Igreja Aparecida chamou o grupo para tocar na igreja dele e não paramos mais”, conta Toninho. “Estamos aí até hoje.”

O Clube Caçula de Catira, que atualmente conta com 18 membros, se empenha para preservar diversas tradições da cultura interiorana. Eles fazem missa sertaneja (hinos bíblicos em ritmo sertanejo), show de música sertaneja raiz e catira. A dança folclórica é tão antiga que suas origens se diluíram na mesma cultura oral que lhe permitiu sobreviver.

A versão mais conhecida da história é de que, nos tempos de colonização, o catira teria servido como instrumento de catequização e conversão dos índios ao cristianismo, sendo utilizado em festas em homenagem aos santos. Os jesuítas teriam aproveitado danças nas quais os índios se posicionavam em roda e batiam pés e mãos e inserido elementos portugueses, como o sapateado e a viola. Diz-se que São José de Anchieta escreveu as primeiras canções para o catira, traduzindo textos sagrados do catolicismo para o tupi, de forma que os índios pudessem entender e cantar.

José Theodoro, o Barreto da dupla Barreto e Batatais, estudou a fundo a história da moda raiz e desmente a versão:

“O catira não é brasileiro. Ele nasceu na África e foi para Portugal. Nessa época eles utilizavam instrumentos diferentes. Foi só no Brasil que inseriram a viola.”

Os portugueses teriam apresentado a dança aos índios, e ela ganhou novas roupagens em cada região do Brasil. Os gaúchos usam o tamanco, os mineiros têm o recortado mineiro e por aí vai. O Grupo Caçula de Catira dança o catira paulista.

Um elemento comum a todas essas tradições de raiz é a viola. Embora de longe possam parecer a mesma coisa, a viola é diferente do violão, seu parente mais agraciado pela mídia. O violão é maior e costuma ter seis cordas de nylon ou de aço. Enquanto isso, a versão brasileira da viola é menorzinha, com um timbre mais agudo e metálico, e tem dez cordas de aço divididas em cinco pares. Outro diferencial da viola caipira é que ela possui diversas possibilidades de afinação. Há quem alegue que são mais de vinte. O jeito de afinar varia de acordo com a região do brasil, e pode mudar até mesmo de cidade em cidade.  

Há uma lenda por trás da criação da Rio Abaixo, uma das afinações mais populares. São Gonçalo de Amarante, protetor dos violeiros (o santo aprendeu a tocar o instrumento no Brasil, tanto que só por aqui ele porta uma viola em suas representações), consternado com a devassidão instaurada em terras tupiniquins, resolveu agir. Todo sábado organizava festas nas quais se transvestia e às quais convidava prostitutas, que passavam a noite toda a dançar no embalo de sua viola. Dessa forma, no domingo ficavam cansadas demais para pecar. O tinhoso, irritado com São Gonçalo, resolveu também aprender a viola. Seria ele a desenvolver a Rio Abaixo, uma afinação de melodia tão bela que seria irresistível. Por isso se difundiu entre as populações ribeirinhas que, se fosse vista uma barca vindo rio abaixo, com um belo homem tocando igualmente bela melodia, dever-se-ia correr, porque aquele era o coisa-ruim querendo corromper as mulheres puras e levá-las em sua barca. As mulheres levadas nunca mais eram vistas.

Não é por aí que param as artimanhas do diabo. Ele aproveitou o talento com a viola para conseguir almas. Naqueles tempos o violeiro era sujeito de prestígio. Eles realizavam duelos de rimas improvisadas entre si, conhecidos como cururu, em que tinham a chance de testar suas habilidades. Acreditava-se que o traquejo com o instrumento era algo a vir de berço: ou você nascia sabendo, ou nunca aprenderia. Por isso alguns aspirantes a violeiro faziam pacto com o capeta, e assim aprendiam a infame afinação Rio Abaixo, se tornando grandes violeiros.

Os violeiros da turma de Toninho, por sua vez, utilizam as afinações Quatro Ponto e Cebolão. Conta-se que a segunda é dotada de melodia tão bela que quando foi inventada fez os ouvintes lacrimejarem como se estivessem descascando cebolas.

Até meados do século XVIII, a viola foi um dos instrumentos mais populares no Brasil. Perdeu espaço nos centros urbanos com a chegada do violão, mas já estava fortemente incorporada na cultura sertaneja. As músicas mais novas que se dizem sertanejas não têm uma raiz sertaneja tão forte. O que eles aproveitam é a indumentária e a tradição de cantar em duplas. Mas o estilo é outro, mais comercial, derivado do country estadunidense. Terezinha Gonçalves Antônio, casada com Toninho faz 60 anos, aponta que a diferença mais importante é que a música de hoje não tem história, enquanto uma das peculiaridades mais marcantes da música raiz era que ela contava histórias. “Naquela época não tinha televisão, não tinha rádio. Não tinha nem energia, era luz de lamparina. Então quando acontecia alguma coisa o pessoal saía cantando em cima daquele fato, fazia música.”

Toninho Domingues diz que no repertório do seu grupo não se encontra nenhuma música mais recente, como Zezé di Camargo e Luciano. “Não é que eu não goste! Mas eu só canto música antiga, só música raiz. Nossa filosofia é preservar a tradição.” E reforça a importância desse esforço: além do Clube Caçula, o único outro grupo de catira é uma turma que o Clube da Viola abriu recentemente. Um membro deixou o Clube Caçula para dar aulas lá. “Então é tudo fruto do nosso grupo,” Toninho conclui. “Se a gente não tivesse procurado preservar, em Bauru hoje não teria nenhum grupo de catira.”

A paixão pela tradição rural se expressa na relação do grupo com seus contratantes: se o evento for religioso ou beneficente, eles não cobram nada. Se o evento cobra entrada e vai lucrar em cima da apresentação, é cobrado um cachê. “Quando não estão cobrando nada a gente também não cobra, porque a gente não vive disso. Isso para nós é mais lazer.”

Para mais informações sobre o Clube Caçula de Catira, entrar em contato com o próprio Toninho, em seu número pessoal: (14) 99794-1152.

Inspirados pela catira, o Repórter Unesp preparou uma playlist especial, com muita música sertaneja raiz:

Texto: Bruno Ferreira

Produção multimídia: Christian Macías Retamar

Edição: Victor Barreto 

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