O consumo da carne e a situação alimentar do Brasil como indicativo de desigualdade no país
Ana Laura Ferreira, Júlia Paes de Arruda, Letícia Ramalho, Raquel Ferro Dutra, Rayanne Candido
No final do ano de 2020, o mapa da fome voltou a ser um assunto no Brasil. Segundo pesquisa recente realizada pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN), durante a pandemia, 116,8 milhões de pessoas no Brasil convivem com algum grau de insegurança alimentar, isso num país de 211,7 milhões de cidadãos. A nação estava fora do levantamento mundial da ONU sobre a situação de carência alimentar desde 2014, mas quatro anos depois, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontou na Pesquisa de Orçamentos Familiares 2017-2018 que a crise política e econômica instaurada no território nacional mostrava seus primeiros impactos no prato do povo brasileiro.
Nos anos seguintes, então, somos impactados por uma crise sanitária mundial, que contribui para o aprofundamento das crises e deflagra o maior índice de desemprego dos últimos anos no Brasil. O governo federal fornece um auxílio emergencial, variando entre R$150,00 a R$375,00 por mês, que não supre necessidades das famílias necessitadas. Nesse cenário, surgem discussões sobre o contexto em que o país se encontra, e um comentário realizado na internet levanta polêmica, destacando a necessidade de se pensar sobre a situação alimentar dos brasileiros.
“Consumo de carne no Brasil cai para menor nível em 25 anos: é o preço que está alto ou os consumidores que estão mais conscientes?”.
A polêmica atravessa uma análise que Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) tem feito sobre os países que mais consomem carne no mundo. As informações são tratadas e interpretadas pela iniciativa da Universidade de Oxford Our World In Data, que também indica que nosso país é um dos que mais aumentou o consumo de carne entre 1997 e 2017. O Brasil seguiu nessa toada até chegar em 2021, quando a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) identificou que os brasileiros iriam sentar à mesa para se alimentar do menor índice de carne dos últimos anos.
A organização nota que o maior aumento de consumo de carne no mundo aconteceu em países que apresentaram as mais significativas ampliações econômicas no início do novo século. Os líderes hegemônicos nos dados, por sua vez, são as maiores potências mundiais. Em resumo, o consumo de carne no mundo é regido pelo dinheiro: quanto mais rico um país é, mais carne ele vai consumir.
A crise econômica que o Brasil enfrenta tem influenciado os hábitos alimentares do povo. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com base nos dados do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), as inflações do arroz e do óleo de soja atingiram, respectivamente, os números de 76% e 103% em 2020. Com relação à carne, o aumento foi de 35% no período de abril do ano passado a abril deste ano.
Assim, a relação do brasileiro com a sua alimentação é muito mais complexa do que pode parecer. Desde questões econômicas e políticas até aspectos sociais, a composição do índice de consumo de carne do país vai muito além do que diz a consciência da população na hora em que ela escolhe os ingredientes das refeições do dia.
É o que relata Emanuele Aquino, uma jovem do interior baiano que mantém um perfil no Instagram chamado Vegetariana Baixa Renda, onde compartilha reflexões e dicas para quem busca uma alimentação sem consumo de produtos animais. De acordo com a jovem, nos últimos meses houve um aumento no número de pessoas que procuram seus conselhos para compor o prato do dia de forma mais saudável e barata.
“Comecei a introduzir muita política no perfil porque comer não é um ato político? E principalmente: sobreviver nesse momento de pandemia não é um ato político?” – Emanuele Aquino.
O que aconteceu com o poder de compra da população brasileira ao longo dos anos, foi: com 100 reais hoje compramos o que valia 16 reais em 1994, quando o Plano Real foi estabelecido. Quem sente essa diferença é a feirante da família Tanaka, Helena Takeko Tanaka, de 73 anos. Para ela, os preços de hoje, comparados a 10 anos atrás, “têm muita diferença. Podíamos consumir muito mais e dava para comer bem. Agora, temos que nos monitorar para poder comer no mês.” Já há 20 anos, “era uma maravilha, eu vendia tanto na feira que eu adorava trabalhar, eu ia todos os dias, de terça a domingo.”
Para Thallita Flor, chef executiva do Banana Buffet que se apresenta como negra, favelada e antiespecista, a cultura de “pôr mais água no feijão” é a que tem funcionado ao longo da história do Brasil. A jovem conta que durante a quarentena, ela e seu companheiro receberam cestas básicas como ajuda da comunidade onde vivem, compondo suas refeições com alimentos como arroz, feijão, farinha de mandioca e farinha de milho, que renderam por meses. Também receberam produtos ultraprocessados, os quais ela define como “complicados”.
A nutricionista Gabriela Cosmo complementa que não existem nutrientes em alimentos ultraprocessados, mas Thallita Flor fala de sua realidade: “Quem tá passando fome, vai comer qualquer coisa, tá ligado? Então se tem uma farinha láctea fingindo ser leite e um achocolatado da pior qualidade possível para simular um café da manhã, quem tá passando fome não vai reclamar.”
Entrevista por Júlia Paes de Arruda
A GENTE NÃO QUER SÓ ALIMENTO
Em meio à diferença que existe entre a ideia de alimento (base nutritiva) e a ideia de comida (caráter cultural), o que o brasileiro faz é encontrar possibilidades de sobreviver diante da situação em que o país se encontra. Os mais de 14% de desempregados e os 41% de domicílios recebendo o auxílio emergencial, identificados pelas pesquisas do IBGE, encaram o limite do direito fundamental à alimentação.
“Isso é uma coisa que tá clara para os economistas: enquanto o emprego não retomar, a gente não consegue sair disso. Não depende só de preço, depende de renda pra gente conseguir comprar.” – Luiz Gustavo, professor de Economia
Enquanto isso, com 2.205 reais de renda mensal média, os que mantiveram seus empregos no último ano fazem seus malabarismos para conseguir colocar a comida na mesa durante os 30 dias do mês. Só na cidade de São Paulo, de acordo com a pesquisa mensal realizada em maio deste ano pelo Procon e pelo Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese), o preço de uma cesta básica completa equivale a 98,6% de um salário mínimo de 1.045 reais.
“A gente que é preto e pobre sabe disso desde que nasceu, então sempre temos as nossas paradas independente de governo. Então, a gente tem que criar nossa rede, temos que nos aquilombar. Criar na nossa própria comunidade um sistema de horta, de energia, de descarte correto de lixo… claro, podemos e devemos exigir das autoridades esses sistemas públicos, porém não podemos esperar nada do Estado, temos que ser autônomos”. – Thallita Flor.
O retrato numérico que o IBGE compõe da população brasileira em 2020 e 2021 é fruto do que o desemprego e a fome têm construído nos últimos anos, na guerra constante do país contra a precarização da vida do próprio povo. Quem estuda isso é Walter Belik, Dr. em Economia e professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), num panorama da história recente do Brasil que explica como chegamos até aqui.
Assista a entrevista feita por Ana Laura Ferreira na íntegra acessando a playlist!
O direito humano fundamental à alimentação é previsto desde 1948 no Art. 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos. No Brasil, as políticas públicas para segurança alimentar de populações vulneráveis foram empreendidas com a criação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) na década de 90. Entretanto, a iniciativa foi extinta pelo presidente Jair Bolsonaro no primeiro ano de seu mandato.
Outra medida de cuidado, anterior a Bolsonaro, foi a publicação de um Guia Alimentar para a População Brasileira, atualizado em 2014. Este documento é pioneiro em reconhecer a nocividade dos ultraprocessados, e por isso, um modelo exemplar para o mundo inteiro, mas não suficiente para assegurar a qualidade da alimentação dos próprios brasileiros.
Quando parte específica da população é impelida a consumir o que dá e não o que quer, estamos falando não somente da falta de autonomia alimentar, mas também de um projeto político, como explica a nutricionista Ana Célia. Afinal, qual é o rosto de quem necessita das cestas básicas no Brasil?
A pesquisa da rede Penssan responde que as casas onde a renda per capita é de meio a um salário mínimo, geralmente chefiadas por mulheres, por pessoas negras ou com baixa escolaridade, são as mais vulneráveis à fome. Nesses dados, os problemas sociais estruturais do Brasil mostram seus efeitos: enquanto 7,5% de lares brancos sofrem com a insegurança alimentar, o número sobe para 10,7% em relação a pessoas pretas ou pardas.
Tomando o consumo de carne ao redor do mundo como parâmetro de desenvolvimento econômico, a redução do mesmo no Brasil acontece ao mesmo tempo em que o país volta ao mapa da fome. Após avanços significativos na superação deste problema social e econômico, retornamos ao mesmo lugar onde certa vez a escritora Maria Carolina de Jesus relatou as dificuldades em viver a situação de fome nos anos de 1950 na periferia da cidade de São Paulo. 70 anos depois, o rosto da fome no Brasil permanece o mesmo.
“Como é horrível ver um filho comer e perguntar: ‘tem mais?’
Essa palavra ‘tem mais’ fica oscilando dentro do cérebro de uma mãe que olha as panelas e não tem mais.”– Carolina Maria de Jesus em O Quarto de Despejo.