Segure o Baque
Como o maracatu saiu de Pernambuco e veio parar em Bauru
A força vital de ancestrais do batuque afrobrasileiro permanece nos morros de Recife, Olinda e Nazaré da Mata. No nordeste do país, o ritmo transbordante de Chico Science e Mestre Ambrósio move centenas de pessoas em torno da música, da dança e das cores, que remetem à cultura do cotidiano, da rua, da cidade e do povo brasileiro. O Maracatu, como é conhecido o ritmo intenso de origem africana, é caracterizado pelo uso predominante de instrumentos de percussão e teve origem nas congadas, cerimônias de coroação dos reis e rainhas da cultura negra. Muitas mudanças ocorreram, desde as primeiras manifestações religiosas dos africanos até os cortejos de Maracatus da atualidade. Com o passar do tempo, os Maracatus foram se adaptando às influências do contexto sociocultural brasileiro e foram construindo a sua própria e atual estrutura musical e estética. O Maracatu acabou se transformando em uma manifestação popular dinâmica e versátil em sua musicalidade.
Há duas vertentes do ritmo, a de baque solto, de característica rural, e a vertente de baque virado, que predomina nos centros urbanos. Os baques são diferentes do ponto vista da estrutura, dos personagens e das características musicais. A manifestação do baque virado tem relação com o candomblé (religião de matriz africana) e com a coroação de escravos negros. Já o Maracatu Rural se aproxima mais do folclore pernambucano, é mais acelerado e o coro é exclusivamente feminino. As personagens principais dessa manifestação são os caboclos de lança, representados por trabalhadores rurais que com as mesmas mãos que cortam cana e lavram a terra bordam suas fantasias e tocam o ritmo acelerado da música.
Apesar de estar concentrado na região de Pernambuco, a miscigenação dos rituais, festas e comemorações ultrapassou as barreiras geográficas e trouxe o ritmo e a dança do maracatu a outros estados e cidades. Em Bauru, essas manifestações culturais ganharam forma com o grupo Maracatu Abayomi, fundado em agosto do ano passado. Sob a coordenação do pernambucano Alberto Pereira, natural da cidade de Afogados da Ingazeira, o grupo representa a vertente do baque virado. “Tudo começou a partir de profundas reflexões que vieram com os meus 50 anos de idade, sobre o que eu tinha feito da vida até então. Sou pernambucano e percebi que no sul e sudeste do país o Maracatu não tem uma divulgação suficiente”, comenta Alberto.
Atualmente o grupo de maracatu Abayomi conta com 20 membros ativos e alguns membros “satélite”, como explica Alberto, mas as perspectivas de expansão são boas. Diversas propostas para apresentações vem surgindo, além do maior interesse do público nas oficinas ministradas pelo pelo Abayomi todos os sábados, às 15 horas, no parque Vitória Régia.
As oficinas são uma forma de aprofundar os conhecimentos do grupo e também de incentivar o contato com a cultura do Maracatu: “as oficinas são importantes porque, além da batida, a gente consegue explicar como o Maracatu foi construído e quais aspectos devem ser respeitados, expondo ao mesmo tempo a técnica do baque e a fundamentação do ritmo”, explica Alberto.
O coordenador do grupo de Maracatu Abayomi ainda ressalta a importância do ritmo não apenas para a cidade de Bauru, mas para o povo brasileiro como um todo “o Maracatu não se trata estritamente de uma manifestação religiosa, é, em si, um ato político. Quando os reis e rainhas do Congo são coroados é quando o negro consegue garantir que suas lideranças tenham um reconhecimento, mesmo que simbólico. É um ato político já que aquele que é coroado tem um histórico de luta e de liderança político-religiosa”, completa.
Não há um perfil específico para quem deseja procurar o Maracatu: são homens, mulheres, crianças, jovens e idosos, mas talvez existam dois pré-requisitos para aprender o batuque, como aponta Alberto: a pessoa precisa ter um ritmo interno, o que permitiria o aprendizado da batucada e precisa, acima de tudo, respeitar a cultura do maracatu e toda a carga simbólica que ela carrega. “Apesar de ser uma brincadeira, é uma brincadeira séria, repleta de signos e significados. E se não há respeito pela história, memória e tradição do maracatu, não é possível compreender o ritmo” afirma Alberto.
O Maracatu é parte da compreensão do processo de escravização negra e é fundamental para o entendimento de preconceitos que perduram até os dias atuais. Na verdade, todas as manifestações culturais derivam de processos históricos e são importantes instrumentos de compreensão da realidade e do cotidiano do brasileiro, como explica Alberto: “como entender a escravização negra e os atos de rebeldia se não se conhece nada de capoeira? Como compreender a luta pela integridade da religião se a igreja católica impõe a satanização dos orixás? As manifestações precisam estar dentro das escolas, precisam ser vivenciadas pelos estudantes”
O Maracatu Abayomi se configura, portanto, como um dos grupos de resistência do ritmo: representa as rupturas e permanências que surgem com o processo de desterritorialização da prática do Maracatu e apresenta a expressão da cultura popular e da miscigenação de matrizes africanas que fazem parte da formação e constituição da identidade brasileira.
Repórter: Laura Fontana
Produtor multimídia: Jonas Lirio
Editora: Ihanna Barbosa