Anorexia e bulimia: quando a alimentação se torna um pesadelo
Estima-se que hoje 1% da população mundial apresenta ao menos um dos dois mais recorrentes transtornos alimentares humanos: entre o debate das causas, a identificação dos doentes, a procura pelo melhor tratamento e as vozes que merecem ser ouvidas
“Meu problema com transtornos alimentares começa na minha pré-adolescência, lembro de ter passado por várias nutricionistas e não ter conseguido resultado [sobre o emagrecimento]. O desespero para estar dentro de um padrão era muito grande, então eu comecei a passar semanas apenas comendo alface e bolacha água e sal. Eu devia ter 12 anos, no máximo.” Alice (nome fictício), hoje tem 23 anos, é estudante universitária e conta que os comportamentos anoréxicos cessaram após esse primeiro momento, foi quando entrou em cena a bulimia, outro transtorno alimentar que, se não tratado e continuado a longo prazo, se torna a doença catalogada pela OMS (Organização Mundial de Saúde) como bulimia nervosa. É a mesma distinção que existe entre comportamentos anoréxicos e o desenvolvimento da anorexia nervosa.
Os transtornos
A palavra anorexia tem origem grega e significa ausência de apetite, mais especificamente não acompanhada de problemas gástricos. O nome, hoje, soa simplista e incapaz de abarcar a complexidade de razões e motivações que levam ao desenvolvimento de comportamentos anoréxicos graves. Já a bulimia, também com origem no grego, significa “fome de boi”, em referência, bastante questionável, ao hábito, comum nos bovinos, de ruminar; nem sujeitos bulímicos ruminam – uma vez que apenas expulsam o alimento em digestão – e nem o vômito induzido é o único comportamento relacionado à bulimia.
Muita coisa permanece em cheque quando se fala nas causas da doença. A psicologia é, até hoje, uma das ciências que mais se debruçou sobre o tema dos transtornos alimentares. Sigmunt Freud, o pai da psicanálise, em texto datado dos anos de 1892 e 1893, relaciona especificamente a anorexia nervosa à melancolia: tanto uma como outra vêm acompanhadas de sadismo, perda da libido, depreciação do sentimento de si e narcisismo. Essa visão, hoje, perdeu espaço no campo teórico, explicações mais ligadas a outras correntes relacionam a doença a fatores não só psicológicos como também ambientais, em particular à exposição a um padrão de beleza pautado essencialmente pela magreza. Outros procuram na genética a explicação para o transtorno; pesquisa do Scripps Research Institute, dos Estados Unidos, de 2013, levantaram a possibilidade da doença ter fator genético.
Diferente das causas, o grupo de risco é bastante definido. Pesquisas indicam que 90 por cento dos casos identificados de anorexia nervosa são de pacientes mulheres. Outras pesquisas apontam a maior incidência dos registros em garotas na adolescência, chegando a 25 por cento de incidência de comportamentos anoréxicos e/ou bulímicos em pré-adolescentes e adolescentes do sexo feminino. É nesse recorte que as poucas pesquisas estatísticas brasileiras que investigam esses transtornos costumam estar.
Num dos trabalhos mais amplos sobre o tema, pesquisadores da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) se voltaram para a anorexia e analisaram os perfis e os hábitos alimentares de 1148 garotas entre 10 e 19 anos, chegando às seguintes conclusões: 179 delas (15 por cento) apresentaram comportamentos ou tendências anoréxicas; dentro desse grupo de risco, 22 por cento apresentavam quadros de sobrepeso ou obesidade (baseado no cálculo do Índice de massa corporal), contra 15 por cento se olharmos para todas as meninas (veja os dados detalhados nas tabelas mais abaixo). Se, por um lado, confirma-se que comportamentos anoréxicos – não a doença em si, de maneira prolongada e diagnosticada – são mais frequentes em garotas acima da massa corporal considerada eutrófica – reforçando a ideia de que os primeiros sintomas ocorrem devido à depreciação e insatisfação com o próprio corpo frente o culto à magreza -, por outro lado, a pesquisa não revela padrões consistentes quanto à renda per capta da família, confirmando o fato de que a doença pode atingir garotas de todas as classes sociais.
Os sintomas constituem um capítulo a parte. A anorexia nervosa é marcada, por exemplo, pela prática de períodos estipulados de jejum, rígido controle com a ingestão de calorias, atividade física exacerbada e, após o desenvolvimento da doença, magreza extrema e problemas com a autoimagem: “a paciente com anorexia tem uma disfunção da imagem corporal, mesmo muito magra ela se enxerga gorda. A paciente come uma azeitona e se sente estufada pelo dia todo; perde-se a leitura e a visão do próprio corpo”, explica a psicóloga clínica Ana Paula Frederico.
Já na bulimia nervosa, a perda de massa não é fator determinante. Muitas vezes esse transtorno se manifesta em dietas extremas que são intercaladas com surtos de ingestão compulsiva de alimentos, levando a flutuação da massa corporal, autopunição e tentativas de diminuir a culpa através, comumente, da indução ao vômito ou do uso de laxantes – são os chamados comportamentos compensatórios. Quadros de depressão também são registros comuns em ambos os distúrbios.
O tratamento, por fim, é um trabalho multidisciplinar, a ser realizado pelo trabalho conjunto de médicos, psicólogos e nutricionistas, afim de aliar, quando necessário, medicações que estimulam o apetite, antidepressivos, estabilizadores de humor, acompanhamento da dieta e psicoterapias. Entre as psicoterapias clínicas mais aceitas atualmente está a sistêmica-familiar: “o paciente identificado traz o problema familiar; a anorexia ou bulimia é tratada em todo o sistema da família, o problema é discutido em família; a doença surge como um sintoma de uma família disfuncional”, explica Ana Paula (veja a entrevista na íntegra abaixo).
As histórias
Alice é uma dessas garotas. Insatisfeita com sua massa e corpo começou a ter sintomas anoréxicos aos 12 anos, a partir dos 13 a restrição alimentar deu lugar a comportamentos bulímicos, principalmente a indução ao vômito com o dedo ou escovas de dente. Perdeu 20 quilos em alguns meses: “eu amava, era tudo o que eu queria”.
Sem apresentar uma magreza extrema – como é normal em pacientes bulímicos – Alice conta que os pais nunca descobriram seu transtorno, mas junto com a doença veio a depressão e as crises de ansiedade que a levaram a fazer terapia; lá, apesar de nunca ter falado abertamente com a psicóloga sobre o hábito da indução ao vômito, conseguiu discutir sua percepção do próprio corpo e encarar o transtorno como um problema.
Alice conta ainda que continua a viver sua luta pessoal: “até hoje eu faço isso [induzir o vômito] quando como demais e me sinto mal; nunca mais tive uma relação saudável com comida e nunca abandonei totalmente o hábito de forçar o vomito (…) Hoje eu sei que a culpa não é minha e aceito melhor; tenho nojo do meu corpo, mas sei que é uma doença e a cada dia que passa eu dou um passo para perder esse nojo, esse asco, do meu próprio corpo”.
Já história de Jéssica Tomaz, 21, é outra. Há três meses a estudante de engenharia realizou uma cirurgia de redução de estômago e, desde então, não conseguiu retomar uma alimentação regular. “70 por cento do que eu como meu corpo não tem aceitado, tudo ele rejeita e eu sou obrigada a colocar para fora (…) Desde a operação isso vem acontecendo, o corpo rejeita e sempre que eu como já fico perto do banheiro”, explica Jéssica, que tem realizado acompanhamento médico constante desde a cirurgia. Embora pouco comentado, reações bulímicas e/ou anoréxicas são um quadro significativo em pacientes que passam por cirurgias do tipo; segundo pesquisa do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (Universidade Estadual de São Paulo), estima-se que 7,38 por cento dos pacientes que passam por essa cirurgia desenvolvem quadros consistentes de massa corporal abaixo do normal, muitas vezes associado a transtornos alimentares.
O relato da experiência de Jéssica com uma rotina de compensações bulímicas – a OMS trabalha com o diagnóstico de bulimia nervosa a partir do terceiro mês de ocorrências regulares – traz ainda o drama físico e psicológico do doente: “Estou fraca e sem vontade de nada, meu corpo não tem a mesma energia (…) Estou fissurada, toda hora acho que engordei e evito me pesar com medo de ter engordado “, narra a estudante que também viu sua debilidade se estender para os mais variados âmbitos do dia a dia, das relações sociais aos estudos, “não presto atenção em uma aula, não consigo, tudo me deixa alienada, tudo me irrita e me deixa nervosa mais fácil”.
Bruna Cavenaghi, 24, também não tem seu caso dentro das descrições mais recorrentes. Aos 19 anos, infeliz com o trabalho e vivendo um relacionamento abusivo, encontrou-se num quadro de depressão acompanhada de perda paulatina da vontade de se alimentar. Chegou, em meses, a pesar 50 quilos com seus 1,80 metros de altura. A história de Bruna (que está na íntegra no vídeo logo abaixo) é atípica; o emagrecimento não veio acompanhado da distorção da própria imagem, mas sim de uma percepção rápida, da família e de si própria, que ali havia um problema, o que levou a um diagnóstico rápido de anorexia nervosa e a um tratamento psicofarmacológico bem sucedido.
Hoje Bruna se sente recuperada, voltou ao seu peso normal, se alimenta normalmente e trabalha como desenhista e co-produtora de um canal de vídeos no Youtube, mas vive a vigilância de quem sabe que passou pela anorexia, uma doença que as pesquisas mais recentes indicam um índice de reincidência próximo aos 50 por cento e de óbito na casa dos 20 por cento: “eu não quero ter [anorexia] de novo, eu revejo a minha vida sempre que diminui minha vontade de comer”, narra Bruna enquanto explica o porquê de participar de grupos no Facebook que prestam auxílio a pessoas com transtornos alimentares.
Por fim, Erika Rosenfeld Bayer Matias, 21, estudante de ciências sociais da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), relata nunca ter sofrido com sobrepeso, mas suas primeiras preocupações com o corpo vêm ainda do começo do período escolar; nos anos seguintes a prática de atividade física, já visando o emagrecimento e se espelhando em modelos de passarela. A partir dos 13 anos a bulimia: “na sétima série eu vomitei a primeira vez e senti um alivio imenso. Quando eu me sentia gorda eu sempre me batia com o intuito de sentir dor; achava que me batendo as gorduras iriam queimar”, explica Erika.
No ensino médio o quadro de Erika se agravou, comer e induzir o vômito se tornou uma rotina que levou a inflamações no intestino e no esôfago e, num momento de choque, à hematêmese – o sangue misturado ao vômito. Foi nesse período que os pais tomaram conhecimento e a família passou a frequentar o Proata (Programa de atenção aos transtornos alimentares da Universidade Federal do Estado de São Paulo): “quando eu entrei no programa, desenvolvi a anorexia nervosa. Eu não comia por nada (…) Meu corpo mudou muito, perdi muitos quilos, cabelo, passava mal em excursões com a escola. Cheguei num estágio que eu tinha medo de acordar e dormir, se eu estivesse acordada eu ia ter que comer; dormindo eu sonhava com comida. A vida ficou insuportável”, explica Erika que, enquanto isso, no colégio, se tornou vítima de bullying, a bulimia causava o mau hálito e a anorexia o corpo em que os ossos já se destacavam. Com 1,81 metros de altura, Erika foi de 61 para 49 quilos e deixou de menstruar por nove meses.
Prestes a ser internada veio o segundo grande choque, diagnóstico de principio de osteoporose e a recomendação para deixar de montar a cavalo – grande paixão da vida de Erika – e disso a recuperação gradual, “eu comecei a melhorar aos poucos, eu comia e me sentia muito mal, porém me lembrava disso [não poder mais andar a cavalo] e melhorava. Às vezes eu passava meses só comendo feijão e fruta; depois só inhame e suco. O processo de mudança até a melhora é difícil porque você vai tomando consciência que precisa melhorar porque você não quer morrer”, conta a estudante que contou com auxílio de psicólogo, psiquiatra, nutricionista, dois clínicos gerais e sessões de terapias para si, com outras garotas anoréxicas, e para os pais, também com os pais de outras pacientes.
Mesmo estando bem, a postura de Erika é a mesma de outras pacientes que já passaram por transtornos alimentares, a constante vigilância: “mesmo quando eu cheguei perto dos 59 quilos eu tive altos e baixos, até hoje para mim a questão do corpo e da beleza é complicada. Por exemplo, ontem eu comi um sorvete e hoje eu acordei pensando que deveria correr para queimar essas calorias. Então, esses pensamentos sempre estão presentes, mas hoje eu aprendi a me controlar mais”, finaliza.
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Reportagem: Michael Barbosa
Produção Multimídia: Vitor Almeida
Edição: Giovanna Diniz