Minha primeira crônica esportiva
Por Adriana Kimura
Da experiência inaugural de uma palmeirense meia-boca metida a turista no estádio
São quase 15h. Estamos sentados porque é domingo e meu pai está ao meu lado pelo mesmo motivo. Um tranco e o aviso, que vem bilíngue desde a Copa, impecável: Estação Fradique Coutinho, desembarque pelo lado direito do trem. E eu concluo que faz tempo isso de não morar em São Paulo. Na Pinheiros, eu penso: ainda bem que não desço aqui, ainda bem que nunca entro por aqui – sempre é horário de pico em determinadas estações; na Faria Lima, não há observações para transferência, é só Estação Faria Lima – e que poderia ser mais Pinheiros, mesmo sem ninguém descer, por questão de proximidade. Mas Estação Fradique Coutinho? Essa é nova. Gente mais das antigas vai dizer: coisa nova é a Linha Amarela.
Quando descemos para a maravilhosa e breve transferência na República, já tem gente a caráter. Sentido Palmeiras – Barra Funda, à velha oposição Corinthians – Itaquera, mas hoje vamos para derrubar o Santos. Na escada rolante, quem fica parado na esquerda é ao que minha irmã tem direito de atribuir a alcunha – como meu pai chama os senhores de Corolla nas avenidas do fim de semana – ‘domingueiro’. Mas, à parte eles, saímos rápido do metrô. Também não adianta tentar correr: o caso é de procissão; movidos pela mesma Graça.
Eu gosto porque parece atípico. Como a Copa de 2002, no Japão, a Fórmula 1 domingo cedo, ou viajar saindo às 4 da manhã; os jogos do Brasil numa verdadeira madrugada, meu pai no sofá, inclusive na parte da farra do podium em espumante (sempre Michael Schumacher e Rubens Barrichello pela Ferrari, seguidos de alguém da BMW: Montoya ou o outro Schumacher), acordar ainda no escuro com a família toda descendo dois elevadores de mala para um Kadett – coisas que não acontecem todos os dias. A diferença é que hoje estou ciente de que não acontecem. Vou conhecer o Allianz Parque.
Depois do saudoso Parque da Água Branca, a Francisco Matarazzo dá passagem ao novo, imponente e quase espacial, estádio do Palmeiras. A entrada parece de show, inclusive porque todos pagamos caro para exercer, de perto, algum tipo de idolatria. Não vi a entrada de camarote, mas o portão pra região do gol norte era a entrada da maior torcida organizada do Palmeiras, a Mancha Verde. Eu me preparei pra ver o fenótipo idealizado de quem torce tanto. Procurei o nível de loucura a olho nu e frustrei todos os meus preconceitos. A Mancha Verde, pasmem!, veste camisa branca.
Na fachada, respeitei meu ritual de turista com mais de três, quatro fotos. Mas, quando chego à catraca, meu pai me entrega a carteirinha Avanti: então eu sou de casa e, à parte o meu deslumbre, minha irmã levou oito minutos apontando, sem que eu pudesse ver, os que vieram de fora da casa – um grupinho mirrado, mudo, esquálido e que torrou no poente de um sol honrado de inverno; os visitantes. Como raros eram os não sócios.
Para subir, eu reparo, tem mesmo escada rolante. Uma bomboniere que é o mais literalmente possível coisa de cinema. Pode ser má fé da minha parte, porque só vi antes do jogo, mas o banheiro foi inacreditável. Isso é, eu tinha a visão do Palestra Itália aos meus dez anos, durante um Palmeiras e qualquer time esquecível, um banheiro de tirar o fôlego, prender a respiração e torcer pra ser breve. Esse do Allianz Parque é abençoado com papel higiênico, desinfetante e sabonete.
Encontramos nosso lugar, hoje numerado, sem precisar da ajuda de uns 12 staffs que se ofereceram para nos orientar durante o caminho. Eu não consigo evitar que seja impressionante. Qual foi o arquiteto apaixonado por futebol que pensou tão bem nisso? Estamos no alto, no centro, podemos ver tudo – até a torcida do Santos, se você procurar bem. Finalmente, não é como no cinema, com o diretor escolhendo a dedo por onde vai nosso olhar. É um verdadeiro teatro, sobram até rastros de bastidor disputando olhares. A plateia, ultrapassando de interatividade, grita um a um os nomes de quem já entra em campo. E se esquecem de um? Coitado! Minha irmã me tranquiliza: estão chamando na ordem pelas posições.
Começou e eu penso que o cara sentado à minha frente é meu antigo professor de atualidades. Dá pra ver até o limite daquela linha da cabeça em que o rosto bem pode ser de um jeito como todo o contrário. O Leandro Pereira e o Rafael Marques são a mesma pessoa. Camisa 17, camisa 19, pra mim tanto faz. A diferença veio geográfica: esse tá sempre aqui na lateral direita, perto da gente; aquele vai lá pela frente, esperando pra meter gol. E, em 14 minutos, ele consegue. Recebe de Robinho, gira sem encarar o zagueiro Werley e é gol. Minha irmã me abraça mesmo!, acho que orgulhosa porque até eu acabei gritando.
O juiz apita, apita, apita. Acho que são sete vezes a cada quatro minutos. Sei que é de praxe xingar juiz; até meu pai, que não é disso, em dia de jogo pode. Mas, poxa, é chato demais mesmo. Palmeiras parece que já não consegue chegar a bola a nível de ataque na base do passe. É chutão do Prass e um Ricardo Oliveira que se joga – sempre do mesmo jeito, escancaradamente sentado, e ganhando falta do juizão. Uma coisa que a gente não vê na TV é esse momento ridículo que o cara-de-pau levanta logo depois do drama de uma falta que não vingou.
Um lance pra procurar vídeo em câmera lenta foi o que deixou Thiago Maia no chão. Não vi como aconteceu. O carrinho de golfe do atendimento entra em campo, os dois médicos do Santos correm em direção à área – nada parecia fora do normal. Um médico do Palmeiras entra para ajudar, Thiago ainda não se mexe, eu penso e exclamo: morreu. Sai de colete cervical, montado no carrinho. O outro lance, menos dramático no sentido da saúde, mas que teria rendido um 2×0, é um pênalti do Dudu que o juiz não marcou pelo mesmo motivo de dar tanta falta pro Ricardo Oliveira: estava sempre longe demais do lance para ver o que acontecia.
Um a zero é difícil porque estamos todos aflitos de que uma besteirinha é empate e duas são virada. Finalmente confiro que o senhor à minha frente não é o antigo professor de atualidades. Descubro que o picolé vendido durante o jogo é Diletto e agradeço por não ser criança o suficiente pra que meu pai acabe insistindo em me comprar um. Mas a classe média alta, que ocupa basicamente todos os lugares que posso ver – cadeiras, aliás, em todos os setores -, se deleita. (Confira a matéria de Michael Barbosa sobre a elitização do futebol). Durante o intervalo, algumas líderes de torcida dançam enquanto um porco inflável verde sobrevoa o campo – genial. Há mulheres e crianças, como se as crianças fossem unissex – eu destaco que não vi nenhuma menininha.
O Lucas Barrios entra ovacionado no lugar de Leandro Pereira que sai aclamado. Barrios é uma espécie de deus. No único lance com ele que me rende atenção, o mesmo Werley que não conseguiu evitar o gol do primeiro tempo chuta a bola diretamente para fora, num segundo tempo igualmente inspirado, em receio de tentar passar por Barrios e pela torcida do Palmeiras. Um palmeirense sem camisa, muito chato, grita palavrão cem minutos seguidos. O juiz dá um escanteio que era pra ser tiro de meta e eu fico pensando se há uma terceira opção ou se ele só errou na escolha entre o certo e o oposto.
Minha irmã está preocupada que seja repeteco de um outro início de 1×0 que virou terror, mas eu só me preocupo quando são anunciados os acréscimos – bem típico tomar gol nesses minutos que nem eram pra ser, não fosse o Ricardo Oliveira sempre no chão e o Thiago Maia que, ufa!, sobreviveu (a gente não precisa torcer pela fratura do jogador adversário, feito em notícia do Jornal Nacional durante a Copa). Começa a anoitecer, o campo se acende para o fim de jogo. Vamos de um a zero, com emoção e sem infarto. Estou satisfeita por ter visto o trabalho dos gandulas e o Hino Nacional a Meu Palmeiras, Meu Palmeiras, Meu Palmeiras!, coisa que a TV não mostra. Na Francisco Matarazzo, à saída do estádio, o pessoal come lanche de pernil. Engraçado como a gente carrega uns clichês estúpidos quando vai de turista: achei que comeriam peixe nesse dia, não porco.
Texto: Adriana Kimura
Edição: Keytyane Medeiros
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