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Você sabe a regra do impedimento?

Daquilo que ainda afasta as mulheres do universo do esporte, porque as “garotas só querem se divertir”

O tabu quanto à inserção da mulher no esporte já foi uma questão de vida ou morte. Nas Olimpíadas da Grécia Antiga, inauguradas a 776 a.C., as mulheres eram impedidas de participar. A cidade de Olímpia, onde aconteciam os jogos, era um lugar de homens por justificativa sacra e as mulheres desobedientes eram julgadas sob a pena de morte. Como nos apontam as conquistas femininas ao longo da história, especialmente no que diz respeito às Olimpíadas, o esporte, como fruto de mimetismo das hierarquias socioculturais a que se ajusta, reproduz, para além dos preconceitos intrínsecos à sociedade, os movimentos de transformação da ordem social. Entre tais transformações, estão as correntes de empoderamento feminino que dão novo tom inclusive ao cenário esportivo.

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Conquistas da trajetória histórica das mulheres no esporte/Arte: Marina/Dados: O Globo e efdeportes.com

As modalidades que passaram a ser incorporadas às competências femininas ainda são carregadas de ressalvas quanto a esportes de contato ou marcados pela agressividade. A lógica de preservação das mulheres para fins de reprodução e cuidados com o lar é um argumento histórico na segmentação do esporte como reduto masculino e é dele que partem conceitos como os de “esporte de mulherzinha” e de “coisa de moleque”. O espaço conquistado pela mulher no esporte ainda é estigmatizado pela plasticidade do corpo feminino, sendo associado à sexualização e à fragilidade sob uma perspectiva fitness, diretamente relacionada a hábitos de saúde – nunca como forma de lazer. Essa linha de raciocínio afasta as mulheres da condição de consumidoras do esporte e as coloca em posição de inferioridade nos espaços de socialização através da prática e da contemplação esportivas.

Além desses preconceitos inerentes à formação cultural de garotos e garotas, o esporte feminino esbarra em um problema de ordem mais burocrática e estrutural: o de incentivos e investimentos. Das 141 medalhas brasileiras nos Jogos Panamericanos desse ano, 43 são conquistas femininas. A exemplo do futebol, por outro lado, o Mundial feminino, recebido pelo mesmo país que o Pan, escancara distâncias em relação à modalidade masculina do esporte mais praticado no mundo – o futebol. A final da Copa do Mundo feminina foi a maior audiência já registrada por uma partida de futebol nos Estados Unidos, mas o gramado sintético é o resquício da lógica que representa a maioria esmagadora dos países praticantes da modalidade: futebol é coisa de homem – a Copa do Mundo (masculina) jamais seria disputada em grama da indústria têxtil.

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A cultura do esporte entre mulheres fora do âmbito profissional é uma conquista importante para o espaço feminino dentro da área Foto: Marina Moia

Segundo a repórter da ESPN Gabriela Moreira, a expressividade do patrocínio dos campeonatos de futebol e do pagamento das cotas de transmissão televisiva, quando se trata da modalidade masculina – em detrimento aos investimentos para a feminina -, associada à maioria de público masculino consumidor do esporte, constitui um entrave para a visibilidade do futebol feminino. Gabriela aponta como solução para essa questão a criação de campeonatos regulares entre clubes, que permitam às agremiações manterem seus times femininos jogando de maneira mais contínua. A repórter da ESPN explica que essa medida possibilitaria ao produto futebol feminino – que, ela concorda, é diferente, mas não de menor qualidade que o masculino –  mais sustentabilidade ao ser vendido para um público receptor mais expressivo.

Investimentos no futebol feminino/Arte: Marina Moia/Dados: Ministério do Esporte

Investimentos no futebol feminino/Arte: Marina Moia/Dados: Ministério do Esporte

Gabriela Moreira comenta que há resistência das confederações de futebol ao investir em um produto que não gera potencial retorno, como é o caso do futebol feminino atualmente. O desinteresse de homens e mulheres no consumo desse tipo de futebol é uma resistência intrínseca à caracterização do universo do futebol como exclusividade masculina. A jornalista Luana Rodrigues aponta: “Criou-se muito no Brasil essa ideia de que futebol é coisa de homem, e isso afugenta tanto as pessoas de assistirem partidas femininas quanto mulheres de jogá-las”. Incentivada e apaixonada desde muito cedo, mesmo sem sucesso ao praticar futebol, Luana é um exemplo de mulher que usufrui do esporte, antes e com muito zelo, pelo lazer.

É trabalhoso ser consumidora de esporte, um produto pensado e reproduzido para homens – principalmente no caso do futebol brasileiro. Luana Rodrigues acompanha vôlei feminino e Fórmula 1, lidera uma liga do Cartola FC à frente de 23 homens – 7 posições em vantagem do namorado, que teria lhe ensinado a técnica –  e é corintiana de estádio desde uma idade esquecida de tão distante. Ela comenta que, em discussões sobre futebol, os homens partem do pressuposto de que sabem mais sobre o assunto. “Uma vez, durante uma conversa em que eu falei que acompanhava o Campeonato Brasileiro, um menino me perguntou se eu sabia a regra do impedimento”. A regra do impedimento, considerada um pouco mais complexa que outras no futebol, é um clichê dos testes de conhecimento futebolístico.

O conceito de equipe é marca dos esportes coletivos (Foto: Bibiana Garrido)

Mariana Rodrigues é produtora da ESPN do Rio de Janeiro e, durante a cobertura do jogo entre Palmeiras e Flamengo pelo Campeonato Brasileiro sub-20, algumas semanas atrás, passou por um caso entristecedor de preconceito por parte de torcedores que gritavam comentários maliciosos sobre seu corpo, em coro. A produtora escreveu sobre o episódio e apontou que o meio do jornalismo esportivo cria, notadamente, segmentações a partir de padrões estéticos, especialmente quanto ao que se espera da “beleza feminina”. Ela destaca que é muito raro encontrar repórteres esportivas negras, acima do peso, assim como é comum ouvir comentários associados às características estéticas de jornalistas do sexo feminino no ramo.

A espectativa de que o universo do esporte não seja do domínio das mulheres desencoraja a participação feminina e transmite a sensação de que uma mulher apaixonada por futebol, por exemplo, necessite provar a todo o instante o quanto realmente gosta e se informa a respeito. “Lembro que meu avô  tinha um livro bem grosso cheio de dados do Corinthians e eu costumava abrir e procurar as coisas mais curiosas, meio que pra dar alguma informação diferente e as pessoas me levarem mais a sério”, declara Luana. Gabriela Moreira também presenciou um episódio que ilustra a reprodução desse tipo de preconceito, nesse caso dentro do Tribunal de Justiça Desportiva. Durante o julgamento do jogador Dudu, do Palmeiras, uma semana atrás, o juiz afirmou categoricamente que as mulheres geralmente desconhecem as regras do futebol; Gabriela, que joga futebol desde a infância e que, inclusive, treinou o suficiente para já ter jogado fora do país, respondeu a ele.

A mulher tem galgado espaço no esporte, conforme a movimentação das demandas femininas na sociedade em caráter mais generalista. Essas conquistas no ambiente desportivo são de uma importância simbólica extremamente expressiva para a conquista dos direitos de igualdade de gêneros – o esporte é um baluarte masculino preservado como tal pela humanidade desde a Antiguidade Clássica. Os entraves que ainda persistem quanto a investimentos, incentivos e espaço são os resquícios de um preconceito velado e onipresente, resultado de toda a inocência das mães que disseram a suas filhas: isso é coisa de moleque.

Quantidade de chamadas com mulheres protagonistas e participação feminina nas redes sociais é reduzida quando o assunto é esporte/Arte: Marina Moia/Dados: Carolina Campos

Quantidade de chamadas com mulheres protagonistas e participação feminina nas redes sociais são reduzidas quando o assunto é esporte/Arte: Marina Moia/Dados: Carolina Campos

O gosto pelas descobertas no esporte como lazer – fora dos deveres de um corpo saudável pela beleza e pela fertilidade – é parte da lógica de uma formação cultural que consagrou os incentivos à imaginação, às experimentações e à curiosidade como elementos exclusivos da infância masculina. As brincadeiras dos meninos: calças com joelhos de couro, para que saibam cair ao chão; futebol desde os primórdios, pelo gosto de jogar e para compreender cedo os conceitos de frustração, hierarquias, rivalidade; bonecos de heróis, pela imaginação. Quando uma mulher gosta do esporte, consome o esporte, sente e pratica o prazer no esporte, ela é fruto de uma infância que negou as brincadeiras de limitado ensaio para a vida adulta de altruísmo por marido e filhos, culto à estética perfeita e sentimentalismo novelístico. A cultura de reservar o lazer do esporte aos homens, essa é a regra do impedimento.

Leia mais:

Observe os padrões femininos e masculinos na página do Facebook do Globo Esporte (monitoramento da analista de mídias sociais Carolina Campos)

Aqui você pode refletir sobre por que a CBF não investe em futebol feminino

Confira o que aconteceu quando garotas sírias experimentaram o futebol em campo de refugiados na Jordânia

Aqui você pode ler sobre a disparidade de salários por questão de gênero dentro do esporte

Minha primeira crônica esportiva: Um dia no Allianz Parque

Reportagem: Adriana Kimura

Produção multimídia: Marina Moia

Edição: Keytyane Medeiros

2 thoughts on “Você sabe a regra do impedimento?”

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