Letícia de Maceno, todo o poder da mulher negra
Foi ainda criança que Letícia de Maceno conheceu o racismo, quando este lhe foi apresentado pelos pais que a preparavam para o mundo. Colorida, de cabelo trançado, em uma tarde de sexta-feira, ela conta como foram seus primeiros passos dentro do entendimento da questão racial.“Sempre foi uma coisa bem clara lá em casa, a gente conversava bastante sobre isso”. Falaram para a filha sobre o racismo que ela iria sofrer em outros ambientes, a escola, o primeiro deles. Falaram para a filha da sociedade ignorante em que vivemos.
“Meus pais foram muito cautelosos para me preparar para esse mundão. E quando eu entrei no colégio, foi quando eu confirmei tudo o que eles tinham me falado. Era muita piadinha, muito descaso e muita indiferença. Desde muito cedo que eu tenho essa noção social, eu tenho também a noção de racismo.”
Na vida da mulher negra o enfrentamento ao racismo vem acompanhado do enfrentamento ao machismo. A questão do empoderamento é muito mais delicada quando se trata de um preconceito que além de tudo, também é estético. O cabelo crespo, enrolado, trançado ou black power, desde cedo, é motivo de insegurança para as meninas que se sentem pressionadas a terem um cabelo considerado dentro de um padrão aceitável. O descobrir-se negra é um processo.
“Essa é uma parte muito complicada para a mulher negra, da gente não ser considerada padrão, de não aparecer em nenhum lugar e não ter representatividade. O empoderamento vem muito de dentro da mina. Aprendi a me olhar no espelho, aprendi a cuidar mais de mim e me apreciar mais. Enxergar ali uma coisa boa. São passos para você pelo menos se sentir confortável com quem você é. O cabelo é uma coisa em que você tem que achar ali a sua força, seja usando ele liso, usando aplique, trançado ou natural, é usar isso como um gás para você, porque com qualquer tipo de cabelo, a mulher preta vai sofrer descriminação. O penteado é uma maneira de resistência. A aceitação pessoal é uma questão muito importante para esse empoderamento. Aceitação da sua imagem no espelho.”
“Quando você liga a televisão ou quando você sai na rua, você vê pouquíssimas pessoas negras. Somos a maior população do Brasil e não estamos em lugar nenhum. Então onde é que a gente está? Estamos na periferia. A representatividade é uma questão crucial. De você poder ver uma menina negra na tevê, ver uma menina negra na sua sala, ver uma menina negra dirigindo um carro. De você ver que você também pode conseguir essas coisas. A importância da estética vai muito além da aparência. É você afirmar dentro de um espaço, que supostamente não te pertence, que você vai ocupá-lo e vai ocupá-lo da maneira que você acha certo. Representando seu povo, seus ancestrais, representando quem você admira. Essa é a questão do black power. Ver na cor da sua pele um motivo para você se orgulhar.”
“Ocupar outros espaços é muito importante para você ver que não é menor, que você pode estar ali e tem esse direito. É um processo, é uma coisa que não deve ser cobrada. É uma militância que tem suas dores e seus prazeres. Encontrar ali, esteticamente, aquilo que te fortalece como mulher negra. A militância, a partir do momento em que você enxerga as questões em que você está inserida, não é uma questão de escolha. Você milita porque você está em um espaço em que você é minoria. Porque você vai ao shopping e é maltratada. Você milita quando vai em qualquer espaço que não te aceita. Então eu milito o tempo todo. Até mesmo em ações mais diretas, dentro do Kimpa estou lá com as minas negras sempre lutando.”
“O racismo nessa e em outras universidades, ele é… parcialmente velado. Parcialmente porque quando você é branco nesse meio você não consegue enxergar o que está acontecendo com as outras pessoas, mas quando você é preto nesse meio você se sente discriminado e silenciado por não poder dizer que está sendo recriminado. Tem aquela política do “todo mundo é correto” e “racismo é errado”, então ninguém vai agir de maneira racista diretamente, mas as maneiras indiretas vão te machucar e te silenciar durante todo o seu percurso aqui dentro. A gente não tem a quem recorrer e, às vezes, até como uma maneira de defesa, a gente não vê esse racismo aqui dentro. Por isso os coletivos são importantes, porque você precisa enxergar o que acontece na Unesp, que é de fato bem cruel. Bem cruel para todo mundo.”
“Mesmo dentro do movimento negro, a mulher negra sofre uma opressão. O machismo é latente. É o nosso espaço de fala e a mulher negra ali não tem autonomia. Fora do movimento negro, a mulher negra é tratada como um bicho pelo homem branco. Então tudo é uma desconstrução diária. Temos que lutar pelo nosso direito de fala dentro do que era pra ser o nosso espaço de fala. A todo momento os homens negros acham que sabem mais que a gente, que militam mais que a mulher negra. Para quem que nós vamos recorrer?”
“Na Unesp eu não vejo uma articulação dos professores, muito menos dos alunos para mudar essa realidade racista. O que eu vejo sempre é o movimento negro tentando sobreviver dentro da universidade. Militar e fazer suas ações em busca de sobrevivência, porque é muito difícil se manter em uma universidade que é branca. É uma luta que não podemos abrir mão, porque esse espaço é nosso também.”
Reportagem: Bibiana Garrido
Produção multimídia: Giovanna Diniz
Edição: Vinícius Cabrera
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