Negro e acadêmico: entrevista com Ricardo Alexino
“É preciso, para haver qualquer mudança, que os negros possam abolir e trazer à cidadania o escravo simbólico que tem dentro de si.”
Jornalista, professor associado livre-docente da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, doutor em Ciências da Comunicação pela USP, coordenador do Programa USP-Diversidade. Coordenador do Núcleo de Apoio à Pesquisa dos Estudos Interdisciplinares do Negro Brasileiro da USP (Neinb-USP), presidente da Comissão Permanente de Observação dos Casos de Racismo e Discriminação no Âmbito da ECA-USP. Ricardo Alexino Ferreira, 51 anos, foi também, de 1995 a 2009, professor efetivo do Departamento de Comunicação Social da Universidade Estadual Paulista.
Para Ricardo, o racismo é algo orgânico e a população brasileira é influenciada, e até incentivada, pelos próprios veículos de comunicação, que “ofertam para a sociedade aquilo que ela quer ouvir”. A opressão do negro se estende para além dos níveis profissionais e pessoais, mas estão também no espaço – que se diz – de entretenimento, quando humoristas caricaturam grupos vulneráveis e fazem suas piadas em cima de uma dor que não é nada menos que milenar. “O humor brasileiro é excludente e covarde, tem uma característica de adolescente em ação de bullying”, reforça Ricardo.
São 127 anos desde a abolição da escravatura e permanece vivo o que não pode ser simplesmente abolido, o pensamento racista na sociedade brasileira. Estamos em 2015 e, ao pensar no quanto de história já foi vivida pela humanidade, o absurdo do preconceito é escancarado. A cor da pele continua sendo determinante das experiências pelas quais as pessoas passam e, um bebê negro, ao nascer, deixa aos pais a preocupação de ser preparado para a violência que virá com o passar dos anos.
O ingresso do negro na universidade – e em todos os outros setores públicos e privados de organização social – ainda enfrenta numerosos obstáculos. São muros sobrepostos que abarcam a desigualdade, essa que já começa na escola, quando a realidade da escola pública é bem diferente da realidade da escola particular no Brasil, e as crianças negras são apenas 33% nesta última. É a oportunidade de estudo e aprendizagem que falta na vida dos pretos e pardos que são mais da metade (56,4%) de todos os alunos que estão na rede pública.
Quando avançamos para o contexto da universidade nessa escala de formação profissional, os números são ainda mais assustadores. Em 1997, negros e pardos com diploma de graduação ou que estavam cursando a faculdade não somavam mais do que 4% dos total de negros e pardos residentes em todo o território nacional. No Censo 2000, três anos depois, 44,6% da população se autodeclarou como negra ou parda – a matemática deixa clara a exclusão.
Mais de dez anos depois, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2011 revela que 35,8% dos negros brasileiros estão no ensino superior. Um crescimento que não pode ser desconsiderado, de fato, mas que ainda é barrado pelo preconceito: quando a pauta é o jovem branco, 65,7% está na universidade. O racismo institucional mantém os negros longe das entidades, criadas para os brancos. Mantém o abismo entre grande parte da população, que não é branca, e se incluem aqui os indígenas além de pretos e pardos, e as instituições de ensino. Muitas delas, não contempladas pela politica de cotas, uma vez que não foram todas as universidades brasileiras que aderiram a essa medida.
Em breve entrevista, Ricardo Alexino aborda a questão histórica do racismo por meio de uma crítica etnocêntrica à academia – estudamos a história branca, escrita por brancos; estudamos pensadores e pesquisadores brancos; temos mais professores brancos. O professor aponta também os não quantificáveis privilégios do branco, tanto na vida profissional quanto em questões pessoais, e enfatiza a importância do debate para desconstruir o racismo na sociedade. Confira:
Repórter Unesp: Quando foi que você se deu conta do que significa ser negro em uma sociedade racista? Como foi esse processo?
Ricardo Alexino: Tive pais que sempre conscientizaram a mim e a meus irmãos a respeito dos problemas étnico-raciais do Brasil. Para compensar a situação brasileira, marcada por um racismo dissimulado e cínico, eles trabalharam a nossa capacidade de ser sujeito, ou seja, ter autoestima e instrumentos para que pudéssemos nos defender, como é o caso de uma formação escolar sólida e reflexiva. Por isso, eu e meus irmãos estudamos nas melhores escolas e a prioridade sempre era a Educação. Portanto, acredito que um indivíduo com uma educação reflexiva tem capacidade de ser pró-ativo e reativo, além de buscar alternativas para as mais diversas situações.
R.U.: Como e quais foram seus primeiros passos de empoderamento dentro dessa questão?
R.A.: O empoderamento de ser negro se deu através do conhecimento de mim mesmo e da busca de uma alta autoestima. E, principalmente, reconhecer que o Brasil tem como essência o privilégio da branquitude e faz dos afro-brasileiros estrangeiros em seu próprio país. Reconhecendo isso fica mais fácil de se movimentar.
R.U.: Você milita/luta pelo movimento negro?
R.A.: Não luto pelo movimento negro. Eu luto pela humanização do negro. Tirá-lo da condição de objeto para sujeito. Mas reconheço a importância dos movimentos sociais organizados.
R.U.: Qual sua opinião sobre o racismo dentro da universidade?
R.A.: As Universidades (sejam elas USP, Unesp, Unicamp ou outras públicas) não estão fora do inconsciente coletivo e das práticas ideológicas do restante da sociedade como um todo. No entanto, o racismo dentro de um meio que trabalha com elementos filosóficos, científicos e a práxis, como são os ambientes universitários, tende a não ser explícito. Porém, ele existe. Muitas vezes, no ambiente acadêmico, tenta-se disfarçar o racismo, mas ele está ali. Por outro lado, não se pode esquecer que o pensamento eurocêntrico das universidades não deixam de ser uma espécie de etnocentrismo. A maioria dos programas de ensino superior trazem em suas referências e bibliografias o pensamento eurocêntrico. É como se América Latina, Ásia e África não tivessem pensadores relevantes. Também, não se pode esquecer que a ciência foi usada muitas vezes para a manutenção do status quo e os privilégios de determinados grupos. Assim, temos as teorias raciais na segunda metade do século 19 e várias outras que foram legitimando exclusões durante o século 20. Para desconstruir o racismo dentro das universidades é necessário ter mudanças de paradigmas, em que o pensamento eurocêntrico deixe de ser hegemônico. É preciso também entender que a universidade é pública e, portanto, deve ser acessível a todos.
R.U.: Existe algum episódio de racismo que você sofreu e queira comentar sobre?
R.A.: Todo indivíduo que pertença à diversidade vai ter alguma situação de exclusão a ser relatada, em menor ou maior grau. Nunca sofri situação escancarada de racismo explícito. Porém, para mim o pior racismo se esconde nos menores detalhes tais como olhares, comentários “ingênuos”, atos falhos. Às vezes, esses atos falhos podem vir de grandes amigos ou de pessoas que você nutre grande afeto e, de repente, sai o comentário perverso da exclusão. E isso incomoda muito. Porém, acredito que o empoderamento está em você aprender a lidar com isso e, na medida do possível, ser de fato educador e jornalista. Ou seja, ensinar ao outro novos olhares, novos discursos, novos paradigmas. Mas considero que qualquer ato de racismo com o outro me fere como se a mim fosse destinado.
R.U.: Para você, porque as pessoas são racistas e, ao mesmo tempo, algumas delas não reconhecem essa violência que praticam?
R.A.: A filósofa Marilena Chauí, a partir do pensamento marxista, disse que “ideologia é a transformação das ideias dos grupos dominantes como sendo de toda a sociedade”. Essa é a matriz. Por isso um porteiro negro irá de maneira eficaz dificultar o acesso de pessoas negras, assim como um policial negro irá agredir um adolescente negro sem ter nenhuma empatia pelo indivíduo. Sequer esse policial vê naquele jovem a expressão do próprio filho. Talvez é possível dizer que o racismo brasileiro deu muito certo. É tão eficaz que um negro pode usar as ferramentas racistas contra si mesmo e os seus pares. Em relação aos não-negros, isso já está totalmente no inconsciente coletivo. É muito difícil transmutar um ser que era mercadoria escrava para um cidadão com direitos garantidos quando todos os aparatos reforçam a sua condição de coisa ou animal, como é o caso da mídia (que retrata muitas vezes o negro de forma estereotipada); o Estado e os seus aparelhos, que o coloca como ameaça ou incapaz; a Escola que o retrata da pior maneira possível ou sequer considera as suas demandas. Portanto, o racismo brasileiro é o que tem de mais perfeito no Brasil: é dissimulado; é epidêmico; se auto-explica (justificando o tempo todo a sua existência) e é cínico.
R.U.: Qual seria uma atitude institucional que poderia contribuir para a extinção do racismo?
R.A.: Para a extinção do racismo? Só mesmo admitido a sua existência e consolidando políticas afirmativas; além de entender que uma sociedade mais igualitária não é privilégio, mas um ato de fato democrático. No dia em que os filhos dos trabalhadores se sentarem nas mesmas carteiras escolares dos filhos dos detentores dos modos de produção e forem atendidos pelos mesmos sistema de saúde, lado a lado, com a mesma qualidade, aí eu acredito que caminharemos para extinção do racismo. Enquanto houver exploração do outro, transformando-o em mercadoria ou coisa, aí não é possível pensar em cidadania.
R.U.: E no nível pessoal, como você, dentro ou fora do movimento negro, vê a solução desse problema hoje?
R.A.: Não faço parte de nenhum movimento, mas atuo no dia-a-dia para mostrar a cidadania e a diversidade como sendo bens universais. Como professor ou jornalista, o meu papel é sempre levar o debate dos direitos civis e da cidadania. Li uma frase da Makota (zeladora dos Orixás) Valdina, que também é escritora, que me impactou muito. Ela disse: “eu não descendo de escravos; descendo de seres humanos que foram escravizados”. Para mim, é a frase mais sábia que vi alguém dizer nos últimos tempos. É preciso, para haver qualquer mudança, que os negros possam abolir e trazer à cidadania o escravo simbólico que tem dentro de si. Exigir que uma sociedade de privilégios da branquitude faça isso é inútil. Ao contrário, essa sociedade eurocêntrica quer que as coisas continuem como estão. É necessário que os negros possam se empoderar. A única forma de se tornar sujeito é de fato fazer o uso da lei; se apropriar do discurso da exclusão para desconstruí-lo; pesquisar e trazer à tona o melhor da história negra que em seus primórdios foi livre e constituía-se de elementos socialmente e culturalmente sofisticados e complexos; libertar a cultura, a intelectualidade e os heróis que foram amordaçados pelo eurocentrismo; é mostrar para as crianças que existe uma ancestralidade negra, forte, intelectual, humana.
Reportagem: Bibiana Garrido
Produção multimídia: Giovanna Diniz
Edição: Vinícius Cabrera
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