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Em defesa da família, de todas as famílias

No Brasil, menos da metade dos lares segue a composição tradicional mãe-pai-filhos. Mesmo assim, setores políticos ainda têm dificuldade em reconhecer outras composições de família

Beto e Leo moram num prédio com varanda. Beto desenha casas e Leo é jornalista. Juntos, adotaram o filho de cabelos ruivos. É o garoto que sorri na capa verde do livro “Tenho dois papais”, de Bela Bordeaux. O casal e o filho são personagens da história infantil, criada para ilustrar os vários tipos de família que existem. A ideia veio há três anos, enquanto a designer ainda estudava na Universidade do Estado de Minas Gerais, como projeto de conclusão de curso. Foi na metade de 2015, com financiamento coletivo, que Bela conseguiu publicar o livro infantil, destinado a crianças de 3 a 6 anos.

“Um livro para a família, para todas as famílias”. É como Bela Bordeaux delineia seu projeto. Como a mãe era diretora numa escola infantil, Bela sempre gostou de conversar com crianças. Ao entrar na faculdade e se envolver na militância LGBT, a designer percebeu a necessidade de se falar sobre famílias homoparentais. “A ideia é que uma criança filha de pais gays se sinta representada, assim como as crianças de famílias tradicionais percebam a existência de outros modelos familiares”, conta Bela. No livro, a história do garoto com dois pais mostra que a vida que levam é idêntica a de uma família tradicional. “Esperamos que, futuramente, toda sociedade entenda a nossa simples fórmula: Pessoas + Amor = Família”.

Veja abaixo como se caracterizam as diferentes configurações familiares encontradas em nossa sociedade:

A tradição é minoria

O Censo do IBGE de 2010 revela as diferentes composições da família brasileira. Dos lares visitados, 49,9% são formados por um casal heterossexual com filhos – formato entendido como o tradicional. As novas configurações então, 18 diferentes laços de parentesco de acordo com o Censo, já somam 50,1%. Mães e pais solteiros, casais sem filhos, pessoas morando sozinhas, netos com avós, casais homoafetivos com filhos; a chamada “família tradicional” já é minoria no país.

Dados do IBGE de 2012 mostram que a família nuclear já é minoria no Brasil (Arte: Marina Spada)

Dados do IBGE de 2012 mostram que a família nuclear já é minoria no Brasil (Arte: Marina Spada/Repórter Unesp)

“Não há uma definição única para família. É interessante pensar sobre o tema no plural: as famílias; pois são múltiplos os arranjos, múltiplas as relações, múltiplos os afetos”. É o que diz Marcela Pastana, coordenadora do Núcleo de Sexualidade e Gênero do Conselho Regional de Psicologia (CRP), de Bauru. A psicóloga lembra que a própria noção de família tradicional – a nuclear, composta por mãe-pai-filhos – é recente. “O mais importante não é nem o formato nem a ligação biológica. Considero as famílias como construções de vínculos, como fonte de cuidados, fonte de proteção, educação e afetividade”, conta Marcela.

Não é todo mundo que pensa assim. “Você concorda com a definição de família como núcleo formado a partir da união entre homem e mulher, prevista no projeto que cria o Estatuto da Família?”. A enquete, no Portal da Câmara dos Deputados, teve mais de 10 milhões de votos, desde o início de 2014. Proposto pelo deputado Anderson Ferreira (PR-PE), o Projeto de Lei 6583/13 define diretrizes de políticas públicas voltadas para a entidade familiar tradicional. Ganharam os contrários, com 51,6% – aqueles que reconhecem a existência de variadas composições de lares. Mesmo assim, a “defesa da família tradicional brasileira” entra na pauta de vários políticos, muitos deles eleitos em 2014. O presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), o deputado federal Pastor Marco Feliciano (PSC-SP) – que se intitula guardião da família brasileira –, o deputado federal Jair Bolsonaro (PP-RJ); todos entram nessa lista.

“A defesa da família nuclear se deu muitas vezes a partir da valorização de que papéis rígidos fossem cumpridos”, aponta a psicóloga Marcela Pastana. É o caso da submissão da esposa ao marido; do papel da mulher enquanto mãe, responsável pela esfera doméstica, e do homem enquanto provedor, responsável pelo trabalho. Marcela afirma que a noção de família tradicional é histórica, social e culturalmente naturalizada. Por isso que, ainda hoje, é comum ver alguns grupos religiosos dizendo-se ‘em defesa da família’. “Eles propagam uma série de valores e concepções sobre o que é certo ou errado, moral ou imoral, desejável ou condenável. Isso, muitas vezes, alimenta a discriminação contra pessoas e grupos que não se enquadram no modelo defendido”.

Discussão de gênero nas escolas

Em nome da preservação da “família tradicional”, políticos do Legislativo ligados à bancada conservadora religiosa conseguiram vetar a inclusão de temas como identidade de gênero e orientação sexual no Plano Nacional de Educação (PNE), em pelo menos oito estados. O documento, que traça metas educacionais para a próxima década, não incluirá o tema da diversidade na pauta das salas de aula. Apesar do repúdio de determinadas entidades, como a Iniciativa De Olho nos Planos, as discussões ficaram restringidas aos Planos Estaduais e Municipais. Segundo a entidade, apoiada pela Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), as estratégias de promoção da igualdade de gênero, raça e orientação sexual na Educação são condição fundamental para o exercício dos direitos humanos em uma sociedade plural e democrática. A inclusão dos temas ajudaria no combate ao preconceito, na conscientização e na compreensão das diferentes configurações familiares brasileiras.

Para Marcela, do Conselho Regional de Psicologia de Bauru, a escola tem como função promover um aprendizado abrangente, reflexivo e crítico para os estudantes; fazer com que as diferenças sejam reconhecidas e valorizadas, sem que sejam convertidas em desigualdade, violência e preconceito. “O papel fundamental da escola é fazer com que todos e todas se sintam respeitados(as), compreendendo que as formas de ser, viver, pensar, agir, sentir e se relacionar são múltiplas e não podem ser enquadradas em padrões impositivos e modelos únicos”, ela diz.

Bela Bordeaux, designer e escritora, vê que algumas pessoas ainda têm dificuldades em entender o novo. “Creio que seja apenas uma inversão de valores, associar família à estrutura em que ela é constituída e não ao que as pessoas dentro dessa família fazem umas pelas outras”. Para ela, criar bons cidadãos é somente uma questão de cuidado, atenção e carinho. É a mensagem que o filho de Beto e Leo, sempre com um sorriso no rosto, tenta passar com a sua história: “Pessoas + Amor = Família”.

Saiba mais sobre as transformações na configuração familiar

Repórter: Lígia Morais

Produtora: Marina Spada

Editora: Bianca Arantes

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