Trabalho escravo no campo: o preço do PIB nacional

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A agropecuária é responsável pela majoritária parcela do PIB (produto interno bruto) do país, mas o uso do trabalho escravo no campo ainda é realidade no Brasil do século XXI

Mesmo que a abolição da escravatura tenha ocorrido em 1888, depois de mais de três séculos de exploração, o trabalho escravo no campo não deixou de existir completamente. A brisa da modernidade, vinda da Europa, dizia que nos novos ares do Brasil não existiam mais senhores de engenho e muito menos escravos. Não à toa, a expressão “para inglês ver” foi disseminada em nossa cultura e é utilizada até hoje.

O trabalho passou a ser remunerado e assim ninguém mais é explorado, certo?  Impossível. A máquina da indústria-riqueza do Brasil não pode parar de rodar e a mão de obra escravizada otimiza a produção. Surgiu, então, uma nova modalidade de exploração aplicada no campo, que gera um ciclo vicioso e obriga o trabalhador a permanecer na propriedade do patrão.

“Só não apanha de chicote, mas é escravo”

“A gente vê que, em regiões como Amazônia e também em lugares em que o agronegócio é muito mais forte, há um avanço do trabalho escravo. Por exemplo, aqui em Alagoas, as pessoas são exploradas, porque elas saem do sertão e vão cortar cana. Mas acabam, muitas vezes, morando em casas distantes da cidade e têm que comprar produtos na fazenda, que são muito caros, superfaturados nos valores. E só saem de lá quando elas pagam esses produtos. Na verdade, o dinheiro que elas recebem não dá pra nada, além da questão da perda do direito trabalhista”, explica Adriano Ferreira da Silva, dirigente nacional do Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Campo (MTC).

Além dos brasileiros, com o contexto político mundial e as crises financeiras que atingem países vizinhos, há um fluxo migratório intenso de pessoas que fogem da miséria, em busca de um emprego, mas chegando aqui podem se deparar com uma situação de exploração. Os imigrantes “existem tanto na área rural, quanto na urbana. Nas fazendas, onde os trabalhadores são trazidos de longe, ou mesmo os imigrantes, que estão no país de forma ilegal, eles são aliciados para o trabalho, onde acabam contraindo dívidas alimentícias, de vestuário, não têm um alojamento digno, decente, para se viver e são até impedidos de sair do local de trabalho por não quitarem as dívidas. Então, são realmente explorados”, afirma a juíza do trabalho e diretora do Fórum Trabalhista de Bauru, Ana Cláudia Pires Ferreira de Lima.

Trabalhos escravo e infantil no campo

A necessidade é o cenário ideal para patrões que recusam os direitos aos empregados -Foto: Vardan Harutyunyan/Unsplash

Sindicalista e assentado da reforma agrária, junto ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Abel Barreto afirma que ainda existe trabalho escravo no campo, mas não como era antigamente. “Hoje, se modernizou um pouco. Só não apanha de chicote, não está na senzala, aquela senzala visualmente [característica]. Mas as correntes continuam, invisíveis, o chicote nas costas continua, porque os maus tratos estão aí. Não respeitam os nossos direitos como cidadãos. Não é remunerado, não pagam seus direitos, não tem o direito de reclamar na justiça, senão entra na lista negra”, explica. A dita lista se trata de uma espécie de retaliação que as empresas fazem aos funcionários que movem ações trabalhistas. O nome do funcionário, divulgado nesse tipo de esquema entre RHs, serve para que o trabalhador não seja contratado por outras empresas.

Segundo o dirigente nacional do MTCa situação é perigosa para os que lutam pelos direitos dos camponeses no Brasil. “Em relação às denúncias, no fato de uma violação de direitos humanos, numa região onde são muito fortes o latifúndio e o fazendeiro, teve um caso em que foi morta uma liderança da gente, vítima de um atropelamento que até agora não foi esclarecido e a gente suspeita que tenha sido encomenda. A gente acredita porque a gente tá naquela região, seria uma liderança que estava avançando e no sertão manda quem tem terra, porque terra é sinônimo de poder”, comenta.

Trabalhos escravo e infantil no campo

O trabalho no campo vem sendo automatizado, mas ainda é comum encontrar, principalmente nas regiões mais pobres, exploração de mão de obra na lavoura -Foto: Cícero R. C. Omena/Flickr (CC)

“Pra mim, os trabalhadores do campo, que trabalham em laranja ou na cana, trabalham até 12 horas. Não são respeitados, não são tratados como seres humanos. Quando não são tratados com dignidade, pra mim ele é um escravo, só não apanha de chicote, mas é escravo”, afirma o assentado, sobre o serviço na lavoura.

Entre a sugestão e a prática existe uma cerca de arame farpado

Abel considera que o fim da escravidão depende dos trabalhadores mobilizados. “Somos nós trabalhadores, do campo e da cidade, nos negando a sermos escravos. É preciso ter essa consciência, porque se for esperar da justiça, do governo, nós vamos continuar mais muitos anos. Eu, Abel, com 66 anos, fui muito escravo nas fazendas e meus filhos, meus netos e bisnetos continuarão sendo escravos. Acho que somos nós que temos que nos organizar, nos juntar para dar um basta e dizer ‘não’ à escravidão”, opina.

“Eu acredito que o caminho para superar a fome e a miséria do mundo é a distribuição da terra”

Adriano enxerga na reforma agrária uma solução para a exploração da mão de obra. “Eu acredito que quando a gente tiver a terra repartida e a agricultura familiar fortalecida, então teremos soberania alimentar. E se tivermos soberania alimentar, teremos comida. E se temos comida, temos dignidade. Eu acredito que o caminho para superar a fome e a miséria do mundo é a distribuição da terra”, comenta a voz do MTC.

Ana Cláudia acredita que “a legislação brasileira é perfeita, o problema é que a realidade está distante da legislação. Então, nós precisamos implementar políticas públicas para o cumprimento efetivo dessa legislação. E a conscientização dos direitos da população é essencial para combater essas práticas de trabalho escravo e tráfico de pessoas também”. A juíza ainda afirma que as “fiscalizações ocorrem através de denúncias ou mesmo através da atuação dos auditores fiscais do trabalho (…) que realizam um papel fundamental na fiscalização, contra o trabalho escravo e têm libertado muitos trabalhadores que se encontram nessa situação”, mencionando ações de combate à exploração.

Trabalhos escravo e infantil no campo

O trabalhador com falta de conhecimento sobre seus diretos acaba sendo vítima de condições exploratórias -Foto: Pixabay

Mas, ao mesmo tempo em que as ações são cruciais para a libertação dos trabalhadores escravizados, o Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait ) denunciou em 2017 uma tentativa do governo, com o então ministro do trabalho Ronaldo Nogueira, de “enfraquecer a fiscalização e o combate ao trabalho escravo” sob o “pretexto de regular o pagamento do seguro-desemprego” aos trabalhadores libertos. Mas o texto de inclusão do benefício traz conceitos que não estão no artigo 149 do Código Penal, que caracteriza a condição análoga a de escravo.

No texto, divulgado em outubro de 2017 no Diário Oficial da União, há o seguinte trecho: “a submissão do trabalhador, contra a sua vontade e com privação do direito de ir e vir, a trabalho fora dos ditames legais aplicáveis a sua categoria”. No entanto, o Sinait esclarece que “a portaria condiciona a caracterização do trabalho escravo ao consentimento ou não do trabalhador e à privação do direito de ir e vir, o que nem sempre ocorre. Muitas vezes o trabalhador não vai embora por falta de opção, ou por vergonha, porque acha que tem que saldar a dívida com o patrão, o que não significa que seu trabalho seja digno”. 2017 também foi o ano em que houve menos operações de fiscalização de combate ao trabalho escravo no campo, desde 1998.

Todo homem nasce livre

A juíza do fórum do trabalho de Bauru explica como funcionam as fiscalizações de trabalho análogo à escravidão. “Constatado o trabalho escravo é feito um auto de infração, os trabalhadores são libertados e é assegurado o retorno deles aos seus lares, com anotação na carteira [de trabalho] e o pagamento de seus direitos trabalhistas. O Ministério Público do Trabalho também entra com uma ação civil pública para compelir o empregador a pagar, além dos direitos dos trabalhadores, uma indenização por dano moral coletivo, por ofender a dignidade desses trabalhadores, ofender toda a legislação protetiva dos direitos do trabalho e o direito dos homens”.

Confira uma recapitulação histórica sobre a origem da exploração do trabalho no Brasil e no mundo:

Além do trabalho escravo no campo, a exploração de mão de obra infantil também ainda é utilizada em algumas produções. Saiba mais sobre o assunto.

Repórter: Nathália Sousa
Produtor multimídia: Felipe Monteiro
Editora da ilha: Giovanna Castro

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