Movimentos populares denunciam insatisfações do brasileiro desde o fim do período militar e indicam o desejo por melhorias diante de uma democracia ainda frágil
Durante mais de duas décadas, a democracia brasileira ficou adormecida. Isso porque, em 1964, um golpe de Estado dado pelos militares deu fim ao mandato do então presidente da república, João Goulart, para iniciar uma soberania autoritária e violenta.
Após anos de censura e repressão, em 1984, a população foi às ruas em um movimento historicamente conhecido como “Diretas Já!”. Os protestos reivindicavam a volta da democracia e das eleições diretas para o cargo máximo do executivo.
Ápice da insatisfação popular, as manifestações contribuíram para o enfraquecimento do regime. No ano seguinte, em 1985, a ditadura chega ao fim com as eleições indiretas de Tancredo Neves, que assume o Palácio do Planalto.
Por problemas de saúde, que logo em seguida o levaram a morte, Tancredo não tomou posse. Com isso, o então vice-presidente, José Sarney, assumiu o cargo, dando início a uma relevante movimentação política que consolidou a volta do regime democrático no país.
Porém, somente em 1989, cinco anos após as “Diretas Já!”, é que a população pôde ir às urnas para eleger um representante de maneira direta. As primeiras eleições pós redemocratização levaram ao segundo turno os candidatos Fernando Collor de Mello (PRN) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Dura pouco
Collor era uma das grandes apostas da direita. Carismático e com oratória impecável, detinha grande apoio do empresariado da época. Por outro lado, Lula crescia dentro da esquerda nacional. Entretanto, sua inabilidade diante das câmeras fez com que não tivesse tamanha popularidade entre as classes mais afortunadas, dando espaço à vitória de Collor com 53% dos votos válidos.
O “caçador de marajás”, apelido pelo qual Collor ficou conhecido, toma posse em 1990, mas renuncia ao cargo dois anos depois, após inúmeras manifestações a favor de seu impeachment. Repleto de escândalos, o mandato foi marcado por denúncias de corrupção e medidas econômicas impopulares, que culminaram na perda de apoio dos brasileiros e do Parlamento.
O afastamento definitivo do cargo se deu antes da finalização do processo, até então inédito, de impeachment. Com a queda de Collor, o vice, Itamar Franco, assume provisoriamente a faixa presidencial. A dança de cadeiras marcou, portanto, uma conturbada retomada democrática.
De cara pintada
Diante das denúncias e dos escândalos da gestão de Collor, estudantes e jovens brasileiros se articularam em manifestações que ficaram conhecidas como “Caras Pintadas”. Além de apoiar o processo de impeachment, os protestos questionavam as excludentes medidas socioeconômicas do governo.
No início da década de noventa, os estudantes tiveram grande protagonismo em lutas sociais pelo Brasil. Os jovens não titubeavam em ir às ruas reivindicar melhorias, fazendo com que os movimentos estudantis ganhassem força e relevância nacional. Dessa forma, as manifestações deram ao povo a esperança de uma nação mais unida e democrática após um longo período de silenciamento e instabilidade política.
Poucos movimentos com tamanha densidade e articulação marcaram os anos que sucederam a volta da democracia. Todavia, em 2013, o Brasil veria mais uma grande movimentação popular impulsionada pelo aumento das tarifas cobradas no transporte público de algumas capitais.
Manifestações de junho
As “Jornadas de Junho”, como ficaram conhecidas, foram as maiores manifestações no país desde os “Caras Pintadas”. Inicialmente, eram movimentos restritos, com pouca adesão popular. Porém, após forte repressão policial, principalmente na capital paulista, e com a ajuda das redes sociais, os protestos tomaram grandes proporções e levaram milhares de pessoas às ruas naquele ano.
A princípio, as passeatas tinham teor apartidário e o grande mote dos manifestantes era diminuir as tarifas dos transportes públicos. Mas, com o aumento dos protestos, alguns grupos e movimentos partidários, principalmente da direita brasileira, apropriaram-se das manifestações, fortalecendo-se dentro e fora delas.
Em resposta, o governo brasileiro anunciou algumas medidas para atender as reivindicações populares. Dentre elas, tornar a corrupção um crime hediondo, arquivar a chamada PEC 37, que proibia investigações pelo Ministério Público, vetar o voto secreto em votações de cassação de mandatos de legisladores acusados de irregularidades, além da revogação dos então recentes aumentos das tarifas nos transportes em várias cidades do país, com a volta aos preços anteriores aos protestos.
Apesar das medidas, o descontentamento popular não diminuiu. Além das tarifas do transporte, as “Jornadas” passaram a questionar o uso de dinheiro público na construção de estádios para a Copa do Mundo FIFA de 2014, sediada pelo Brasil.
Na época, a imprensa denunciou um esquema de lavagem de dinheiro e corrupção por detrás dos investimentos do governo em construtoras. Mas, somente três anos após o início do Mundial, quando as investigações da Operação Lava Jato se iniciaram, que comprovou-se essas irregularidades. Dez arenas construídas no período apareceram nas listas de delações premiadas.
Lava Jato e rejeição de Dilma
Um ano depois, em 2014, teve início uma grande operação que uniu diferentes investigações da Polícia Federal ainda em andamento. Chamada de “Operação Lava-Jato”, o conjunto de investigações emitiu e cumpriu mais de mil mandados de busca e apreensão, prisões temporárias e preventivas, entre outras medidas.
Encabeçada pelo atual ministro da Justiça, Sérgio Moro, a operação dizia lutar contra a corrupção e o “jeitinho brasileiro” de levar as coisas. Ao colocar na mira grandes empresas como a Petrobrás e a construtora Odebrecht, além de políticos e empresários, a Lava-Jato canalizou a insatisfação do brasileiro com a corrupção e, assim, ganhou forte apoio popular.
Com isso, somada à movimentação política vivida desde 2013, a operação culminou em uma polarização social que tomou conta da população brasileira. A direita nacional se solidificou e ganhou grande adesão popular dentro e fora das instituições, enquanto que, por outro lado, o governo centro-esquerda de Dilma Rousseff (PT), então recém reeleita, se enfraquecia.
De acordo com Caio Quero, editor-executivo da BBC Brasil, o país vivia um clima de esperança desde a era Collor, mas a polarização de candidatos e partidos levou a população a perder um pouco dessa confiança. “A eleição de Collor foi bem polarizada, assim como a eleição de Lula. Esse movimento (de antagonismo) já é visto desde esses momentos, a polarização faz com que as pessoas votem mais em oposição do que em esperança”, explica.
Diante do avanço da Lava-Jato e do crescimento da impopularidade de Dilma Rousseff e de seu partido, em 2015 começa a tramitar em Brasília um novo processo de impeachment. O pedido alegava crime de improbidade administrativa. O processo termina um ano depois, em agosto de 2016, e Dilma é impedida de continuar seu mandato, sendo a segunda presidente na história brasileira a sofrer um impeachment.
Uns pra lá, outros pra cá
As articulações partidárias resultaram no afastamento enrijecido da população que se considerava de esquerda dos que se consideravam de direita. Essa polarização deu espaço para candidatos cada vez mais conservadores.
Segundo Caio, o conservadorismo nunca deixou de existir. Porém, com a redemocratização floresceram várias manifestações de esquerda, mas também de comportamento, de orientação sexual, etc. “Entraram governos de aspecto progressista, como FHC, que era centro-esquerda, Lula e Dilma. Sempre aliados com alas mais conservadoras na sua base. Um aspecto político que não estava previsto, como a Lava Jato, trouxe um impacto político muito sério num momento de certo cansaço da população”, explana.
O editor explica que tal cansaço culminou nas manifestações de junho de 2013, que demandaram mais serviços e políticas públicas. “Criaram-se grupos que se contrapunham ao executivo. Foram criados, em 2013, movimentos sociais com vertentes conservadoras, que tiveram como resultado o impeachment de Dilma. Depois vemos Bolsonaro com um governo super conversador”, sintetiza.
Para ele, a população está bem mais engajada atualmente do que antes, uma vez que, em meados dos anos 90 e 2000, a política era mais condensada em nichos e logo após 2013, em união com as redes sociais, notou-se um maior envolvimento popular em questões políticas.
Semelhanças entre as manifestações
Entretanto, apesar desse engajamento muito mais evidenciado atualmente, muitos aspectos observados em ambos os anos, 1993 e 2013, convergem entre si. Durante os protestos dos “Caras Pintadas” os jovens eram os principais atuantes no movimento, assim como também foram os estudantes aqueles que se articularam nas “Jornadas de junho”.
Quando o público tomou às ruas para protestar pelo impeachment de Collor, também reafirmou a luta contra as medidas econômicas impostas pelo presidente na época, fazendo com que se evidenciasse o descontentamento das classes baixas e médias com os planos de governo.
Os caras-pintadas fizeram com que o congresso e o executivo sentissem ainda mais a desaprovação popular. E isso também ocorreu em junho de 2013, quando jovens estudantes de diferentes classes sociais foram às ruas protestar pelas medidas socioeconômicas do momento. A união dessas classes deu mais voz à manifestação como um todo.
Ambos os movimentos, mesmo que em épocas distintas, foram muito relevantes no que se refere à forma de atuação do brasileiro na política atualmente: modificaram a forma como a população se organiza para protestar e expressar suas reivindicações.
As manifestações solidificaram as dicotomias nacionais, foram responsáveis pela forma que atuamos diariamente na luta daquilo que acreditamos. Mas, não foram só esses movimentos que mudaram a forma como nos politizamos no Brasil.
Reflexos das manifestações na democracia
Em 2015, a presidente Dilma Rousseff começaria a sentir os maus agouros deixados por governos anteriores. A população, que se encantava com o trabalho realizado pela Lava Jato, optou por ir às ruas pedir a saída oficial da então presidente.
Assim, milhões de pessoas reuniram-se por todo o território nacional encabeçadas, principalmente, pelo Movimento Brasil Livre (MBL) e pelo slogan “Vem pra rua”. Ambos tiveram seu ápice de fortalecimento justamente em junho de 2013 e, dois anos depois, a união da direita foi decisiva para o afastamento de Dilma.
Diferentemente das manifestações anteriores a 2015, foi nesse ano que notou-se um real engajamento da classe brasileira com maior poder aquisitivo. Até então, se percebia pouca atuação desse recorte econômico nas ruas. Outro ponto interessante entre os movimentos antes e pós 2013 foi a participação dos estudantes, uma vez que nas manifestações pró-impeachment e contra Dilma, era possível notar que apenas alguns poucos estudantes aderiram aos protestos.
Como resultado deste processo, as eleições de 2018 registraram o maior índice de votos nulos, brancos e abstenções desde 1989 no segundo turno. Ao todo, 42 milhões de brasileiros não escolheram votar nem em Fernando Haddad (PT) e nem em Jair Bolsonaro (PSL).
Para Alberto Bombig, editor executivo do jornal Estado de São Paulo, tal resultado deve ser avaliado não como um descontentamento da população em relação à política, mas como manifestação de seus interesses, ou melhor, a retratação de que nenhum daqueles candidatos os representava. “Outros, porém, podem, de fato, ter desistido ou se afastado da política por conta da profusão de escândalos nos últimos 20 anos. De qualquer forma, há muitos estudos indicando um esgotamento da democracia, o que é sempre um perigo”, acrescenta.
Hoje
Em 2019, cresce ainda mais a insatisfação popular e nota-se um brusco retorno do engajamento social, principalmente de classes baixas e médias após a eleição de Bolsonaro. Após anunciar o congelamento de investimentos na educação e o corte de bolsas para estudos e pesquisas acadêmicas, um movimento contrário às propostas teve início. No “Tsunami da Educação”, estudantes, pesquisadores, professores e todos aqueles contrários ao governo foram protestar contra as decisões políticas consideradas. Além disso, questões ambientais e indígenas ganharam destaque.
Porém, diferentemente dos “Caras Pintadas”, que tinham o objetivo claro e específico de retirar Collor do poder, o “Tsunami da Educação” não surtiu o efeito esperado pelos manifestantes, uma vez que, apesar do governo repensar algumas das decisões esclarecidas, a maioria dos estudantes e pesquisadores de universidades públicas tiveram que abandonar seus estudos, pois perderam o direito à bolsas garantidas anteriormente.
Em resposta às ações movidas contra o governo atual, direitistas e bolsonaristas também se manifestaram nos primeiros meses do governo Bolsonaro a fim de expressar seu apoio ao presidente e afirmar que as medidas tomadas até o momento são necessárias para reequilibrar o país.
Assim como o entrevistado Caio Quero afirmou, atualmente existe uma inclinação social que visa votar na oposição ao invés de pensar em esperança política. Portanto, são perceptíveis as manifestações da esquerda diante de um governo de direita, manifestações essas que acontecem em ambas as direções e são observadas em toda a história do país desde a era pós-ditadura militar.
Os movimentos políticos brasileiros após a chegada da nova era democrática foram marcados por diferentes crises e conturbações. Entretanto, diversos meios de exercer a democracia foram postos em prática, mostrando que o regime democrático ainda é a grande conquista dos últimos 34 anos.
Nas ruas: democracia e polarização
Movimento Vem pra Rua (2014) (Foto: Reprodução/Moxotó da Gente) Manifestação Passe Livre (junho de 2013) (Foto: Reprodução/Revista Galileu) Ato Passe Livre (2016) (Foto: Reprodução/EL País) Movimento Não Vou Pagar o Pato (2015) (Foto: Reprodução/EL País)
Repórter: Julia Bergamaschi
Produtora multimídia: Caroline Roxo
Editor: Leandro Gonçalves
Editora-chefe: Nayara Campos
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